FORMA de ESCREVER
O Festival de Arquitetura FORMA 2025 convida arquitetos, investigadores, urbanistas e todos os interessados a submeterem textos críticos dedicados ao tema “Habitação e Construção Sustentável: desafios e oportunidades para as cidades contemporâneas”.
Numa altura em que a crise habitacional se tornou um dos principais desafios das cidades, esta chamada propõe uma reflexão alargada sobre novos modelos de habitar, a relação entre arquitetura e direito à cidade, e a urgência de repensar os processos de construção e regeneração urbana. Desde a habitação cooperativa ao co-housing, da reabilitação sustentável à densificação equilibrada, os contributos devem explorar caminhos inovadores e viáveis para uma arquitetura mais inclusiva, acessível e ecologicamente responsável.
A madeira, enquanto material renovável e de baixo impacto ambiental, surge como elemento central desta discussão. O desafio é pensar como a sua aplicação pode contribuir para uma transformação real e escalável na construção urbana, tanto em termos técnicos como sociais e culturais.
Inspirados pelo princípio dos arquitetos Lacaton & Vassal — “Em vez de demolir, remover, substituir- acrescentar, transformar e reutilizar.” —, esta call procura textos que priorizem a adaptação, a reutilização e a inteligência coletiva na concepção do espaço habitado.
Esta iniciativa insere-se na missão da IF de aproximar a arquitetura das pessoas, promovendo o debate e o pensamento crítico sobre o ambiente construído e o papel do arquiteto na sociedade contemporânea.
HABITAÇÃO E CONSTRUÇÃO SUSTENTÁVEL:
DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA AS CIDADES CONTEMPORÂNEAS
O Festival Forma 2025 convida investigadores, arquitetos, urbanistas e todos os interessados a submeterem propostas para a nossa conferência dedicada aos desafios contemporâneos da habitação. A crise habitacional tornou-se um dos maiores desafios urbanos da atualidade. O aumento exponencial dos preços, a escassez de habitação acessível e a transformação dos bairros em territórios de especulação imobiliária têm afastado cada vez mais pessoas do direito fundamental a uma casa digna.
Como podemos repensar modelos alternativos de habitação que garantam o acesso equitativo à cidade? Como implementar novas formas de propriedade coletiva e gestão partilhada dos espaços urbanos? De que modo a arquitetura e o urbanismo podem contribuir para um habitat mais inclusivo e sustentável? Estes são alguns dos temas urgentes que convocam a reflexão crítica sobre a forma como habitamos e construímos as nossas cidades e transformamos a paisagem.
Além disso, a escolha das tipologias habitacionais desempenha um papel fundamental na forma como habitamos. Modelos de habitação cooperativa, co-housing e unidades flexíveis permitem responder às diferentes necessidades dos moradores ao longo do tempo, promovendo maior interação social e otimização de recursos. Como podemos repensar as tipologias habitacionais para melhor se adaptarem às realidades contemporâneas? Como articular a densidade urbana com o bem-estar individual e coletivo?
A madeira, enquanto material renovável, oferece uma resposta possível a estas preocupações. A sua utilização permite construções mais rápidas, eficientes e de baixo impacto ambiental. Como podem estas abordagens ser aplicadas em larga escala? Que exemplos e experiências podem informar o futuro da construção sustentável e acessível?
TEMAS PROPOSTOS
Os artigos podem abordar, mas não se limitam, aos seguintes tópicos:
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Habitação e direito à cidade: políticas públicas, habitação social e acessibilidade.
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Novos modelos habitacionais: cooperativas de habitação, co-housing, arrendamento acessível.
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Sustentabilidade na construção: impacto ambiental dos materiais, eficiência energética, estratégias circulares.
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Construção em madeira: inovação, viabilidade económica, regulamentação e boas práticas.
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Regeneração urbana e património habitacional: reabilitação sustentável, densificação urbana e proteção do edificado existente.
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Cidades e habitabilidade: desenho urbano, espaços públicos e qualidade de vida.
Inspirados pelo princípio dos arquitetos Lacaton & Vassal: "Em vez de demolir, remover, substituir- acrescentar, transformar e reutilizar", incentivamos abordagens que priorizem a adaptação e requalificação dos espaços.
CALENDARIZAÇÃO
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Data limite para submissões: 26 de abril de 2025
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Comunicação dos textos selecionados: 2 de maio de 2025
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Apresentação no Festival Forma: 11 de maio de 2025
FORMA DE SUBMISSÃO
Os resumos deverão ter entre 300 e 500 palavras, incluindo título, autor(es) e afiliação institucional, e ser submetidos até 26 de abril de 2025. Os artigos completos dos trabalhos selecionados terão um limite entre 5.000 e 6.000 caracteres incluindo espaços. O ficheiro deverá ser submetido em formato PDF, formato A4. Poderão ser anexadas até duas imagens (em formato JPG com máx. 5MB cada), para acompanhar o texto, com os devidos créditos. Os trabalhos selecionados irão integrar uma publicação digital e impressa no âmbito do Festival FORMA.
SUBMISSÕES E CONTACTO
As submissões deverão ser enviadas através do site mediante o preenchimento do formulário para o efeito. Para mais informações entre em contacto através do e-mail info@if-ideasforward.pt.
Esperamos a vossa participação para um debate essencial sobre a habitação e a construção sustentável nas cidades do futuro.
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Seleção de Artigos para Publicação FORMA 2025
A equipa curatorial do Festival FORMA 2025 selecionou os oito textos apresentados neste dossier por se destacarem pela qualidade de escrita, densidade crítica e diversidade temática, contribuindo de forma exemplar para os objetivos definidos no Call for Papers. A seleção responde a uma leitura atenta dos critérios editoriais estabelecidos, nomeadamente: o rigor na abordagem dos temas, a articulação entre teoria e prática, a atualidade das propostas e a pertinência no contexto das transformações urbanas e sociais contemporâneas.
Os artigos abrangem, com enfoques distintos mas complementares, os principais tópicos propostos pelo regulamento, nomeadamente:
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Habitação e direito à cidade: com abordagens que evidenciam o papel das políticas públicas, a habitação social e a inclusão urbana.
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Novos modelos habitacionais: que exploram formas inovadoras de co-habitação, cooperativas e estruturas de acesso justo à habitação.
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Sustentabilidade na construção: refletida na escolha de materiais de baixo impacto, eficiência energética e circularidade dos sistemas construtivos.
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Construção em madeira: analisada como alternativa contemporânea e viável do ponto de vista técnico, económico e ambiental.
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Regeneração urbana e património habitacional: com propostas que respeitam e transformam o edificado existente, evitando a substituição pela destruição.
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Cidades e habitabilidade: ao tratar o espaço urbano como ecossistema relacional e político, onde o desenho e a arquitetura contribuem para a qualidade de vida.
Esta seleção reflete uma visão curatorial alinhada com o princípio orientador de Lacaton & Vassal — “Em vez de demolir, remover, substituir: acrescentar, transformar e reutilizar” — promovendo a arquitetura enquanto disciplina de mediação, cuidado e transformação responsável.
Textos selecionados:
DIGITALLY FABRICATED FUTURES:
EMPOWERING COOPERATIVE, SUSTAINABLE HOUSINGDaniela Silva
Short abstract:
This research integrates digital fabrication in early-stage design to create flexible co-housing models. By merging technological and social dimensions, it fosters inclusive processes, reduces environmental impact, and reshapes the architect’s collaborative role for equitable, sustainable urban development.
Full Paper: Introduction
Contemporary cities face intersecting crises of housing shortages, environmental threats, and shifting social dynamics (Maddalena, 2019). In response, digital fabrication presents architects with new modes of practice and the potential for collaborative, sustainable solutions (Kolarevic, 2003). By integrating digital fabrication from a project’s earliest stages, practitioners can reshape linear workflows into iterative, collective processes that empower both designers and end users.
Digital Fabrication in Architectural Practice
Digital fabrication broadly encompasses computer-controlled manufacturing methods—CNC milling, 3D printing, laser cutting—that translate computational models into physical outputs (Oxman, 2017). Historically, these tools were constrained to late-phase tasks like modelmaking, limiting their transformative potential (Ryder & Ion, 2018). Early-stage adoption allows rapid prototyping, continuous feedback loops, and agile design modifications, ensuring that building geometry, material efficiency, and structural performance align with sustainability goals (Menges, 2012). This approach also positions architects as facilitators of technological synergy, where parametric design fosters real-time collaboration among consultants, makers, and communities.
Cooperative Housing
Cooperative housing, featuring shared ownership or affordable rental models, exemplifies how architectural solutions can transcend siloed thinking (Suarez, 2020). By melding digital fabrication’s capacity for customization with resident participation, housing prototypes can more directly reflect collective aspirations and social equity (Oosterhuis, 2011). This shift redefines residents as co-creators rather than passive occupants, underscoring architecture’s social agency.
Materials and Sustainability
Employing renewable materials like timber in digitally fabricated construction aligns with contemporary imperatives to reduce carbon footprints and resource consumption (Kennedy, 2019). Precision cutting and modular assembly minimize waste, shorten construction times, and enable cost-effective experimentation (Habert et al., 2020). When these techniques intersect with parametric approaches, architects can optimize building envelopes, daylight access, and thermal performance, further mitigating environmental impacts (Maddalena, 2019).
Proposed Case Study: CoFab Living
“CoFab Living” demonstrates the synergy of digital fabrication and cooperative principles in a mid-rise timber structure adaptable to various urban settings. Parametric design software enables the customization of each housing module, accommodating diverse family sizes and lifestyles within a single project (Menges, 2012). Communal workshops located at the heart of the building invite residents to learn fabrication techniques, produce furniture, and collaboratively adapt shared spaces over time. This inclusive model not only fosters technological fluency but also instills a sense of collective responsibility for the evolving built environment.
Expanding the Architect’s Role
As architects adopt and lead digital fabrication processes, their role expands to encompass cross-disciplinary orchestration (Kolarevic, 2003). Collaboration with structural engineers, data specialists, and community stakeholders becomes intrinsic to an iterative workflow (Ryder & Ion, 2018). Architectural practice thus transcends the traditional role of formmaking, operating instead as a platform for negotiation among multiple actors—residents, policymakers, and construction teams alike. This multifaceted engagement can nurture designs that are resource-efficient, socially inclusive, and resilient in the face of evolving urban challenges (Oxman, 2017).
Conclusion
Digital fabrication, when integrated from the outset, has the power to transform housing into a participatory, sustainable endeavor. CoFab Living illustrates how advanced tools, renewable materials, and communal processes can converge to shape equitable urban futures. By bridging the technological and social spheres, architects can cultivate deeply collaborative ecosystems wherein residents become integral contributors to the housing design and fabrication process (Suarez, 2020). Such synergy recasts architecture as an ever-evolving cultural and environmental undertaking, guiding cities toward resilience, inclusivity, and responsible resource use.
References
- Habert, G., et al. (2020). “Environmental Impacts of Digital Fabrication in Construction.” Journal of Cleaner Production, 275, 122-131. - Kennedy, A. (2019). Timber Innovations for Sustainable Architecture. Routledge. - Kolarevic, B. (2003). Architecture in the Digital Age: Design and Manufacturing. Spon Press. - Maddalena, L. (2019). “Urban Housing at a Crossroads.” Housing Studies Review, 21(4), 45-59. - Menges, A. (2012). “Material Computation—Higher Integration in Morphogenetic Design.” Architectural Design, 82(2), 14-21. - Oxman, N. (2017). “Age of Entanglement.” Journal of Design and Science, 3(1). - Oosterhuis, K. (2011). Hyperbody: First Decade of Interactive Architecture. NAi Publishers. - Ryder, G., & Ion, W. (2018). “Collaborative Digital Workflows in Architecture.” International Journal of Architectural Computing, 16(1), 25-37. - Suarez, L. (2020). “Collective Housing and Social Fabrication.” In Proceedings of the Cooperative Design Conference, 167-175.
ALHAMBRA, UMA ARQUITETURA SUSTENTÁVEL
Bráulio Conceição
Hoje em dia falamos muito da sustentabilidade na construção, no impacto ambiental dos materiais, na eficiência energética e nas estratégias circulares, para investigar este tema, gostava de referenciar o complexo arquitetónico da Alhambra, em Granada, que, de uma maneira simples e eficaz, consegue responder a todas estas questões:
Sustentabilidade na Construção
A Alhambra é um grande complexo constituído por vários edifícios, dos quais podemos destacar, a fortaleza, os palácios nazaries, o palácio de Carlos V e o Generalife. As características arquitetónicas deste monumento são fruto de uma lenta maturação das formas, criadas por diversos autores em vários períodos.
A sustentabilidade desta construção está na sua capacidade em reaproveitar, adaptar e congregar, arquiteturas de diferentes estilos e tempos. Chega-nos hoje, como um conjunto de fragmentos que foram a consequência das várias intervenções ao longo da história. Este carácter de transformação começa nos numerosos sultões que reinaram a Península Ibérica, até à chegada dos reis católicos. Contudo, devido ao respeito e admiração que esses mesmos reis nutriam pela cultura oriental, eles souberam preservar o essencial que a arquitetura árabe tinha para oferecer.
Todos os intervenientes foram deixando as suas marcas no monumento; aberturas de vãos, restruturação de hortas e jardins, substituição de revestimentos, renovação de materiais, etc. A Alhambra é hoje, um dos palácios da civilização islâmica da Idade Média mais bem preservado e conservado, comprovando a capacidade de adaptação e transformação deste conjunto arquitetónico.
Impacto ambiental dos materiais
O impacto ambiental dos materiais diminui quando a arquitetura utiliza o meio geológico envolvente como fonte de matéria-prima para a sua construção. Utiliza aquilo que a “terra” lhe dá, reutilizando e repetindo esses mesmos materiais de forma racional, numa arquitetura despojada de elementos acessórios.
Assim, as superfícies da arquitetura da Alhambra demonstram uma certa simplicidade, ou ausência de informação, que é compensada pela variedade introduzida pela ornamentação. Isto cria um equilíbrio entre a falta e o excesso de informação. A repetição da ornamentação não se torna maçadora, pelo contrário, numa lógica de continuidade, através de jogos de texturas, luzes, cores e geometria, acaba por estimular o visitante.
Apesar dos interiores da Alhambra serem marcados por fortes simetrias e geometrias, estes não transmitem uma sensação de rigidez e estaticismo, e isso deve-se, em grande parte, à presença destas “superfícies vivas”. A luz que transita à medida que as horas passam, transmite uma certa sensualidade nas formas arquitetónicas, nas colunas, nos muros, nos tetos, na água, nos azulejos… e isso faz com que a nossa perceção se transforme ao percorrer o espaço.
Eficiência Energética Passiva
É possível alcançar uma eficiência energética passiva, através da escolha correta dos materiais e da integração de vários elementos da natureza. A arquitetura não é só construção, também é vazio, como um espaço de transição ou um jardim, permitindo o equilíbrio e conforto da atmosfera dos espaços interiores.
A arquitetura da Alhambra deixa-se contaminar pela natureza. A natureza aparece, não só à escala do território, no frondoso bosque que cresce no sopé da colina onde se implanta a fortaleza, mas também à escala doméstica, nos pátios que muitas vezes são jardins privados. No caso específico da Alhambra, os jardins “espreitam” sobre a paisagem, funcionando como jardins miradouro.
Outra característica destes jardins árabes, está relacionada com a capacidade de adaptação da sua linguagem, combinando a atividade agrícola com a transformação artística da natureza, onde a presença da água e da vegetação ganha protagonismo, transmitindo tranquilidade e abundância. Normalmente, estes jardins serviam como pontos de chegada da água, que era encaminhada por um complexo sistema hidráulico, servindo como rega da paisagem agrícola
Estratégias circulares
As estratégias circulares em arquitetura, estão relacionadas com a habilidade com que se manipula a utilização do mesmo material, não só numa lógica de poética espacial, mas também numa lógica de reutilização e economia de meios.
Na Alhambra, a natureza está sempre de “mão dada” com os materiais, que são utilizados de forma bastante imaginativa. Há uma habilidade especial em como se controlam as aparências visuais. O significado dos materiais nunca se esgota, e aparece disposto de maneiras distintas, de forma a proporcionar novas experiências.
As paredes de adobe são muros pesados, imóveis, que garantem a perenidade desta arquitetura. O mármore que tanto é utilizado no pavimento como nas colunas, garante nobreza e delicadeza. A madeira utilizada nos tetos, na ornamentação e nas gelosias dos vãos, transmite uma sensação de aconchego e cria uma atmosfera acolhedora e calorosa. Os azulejos com os seus padrões complexos e efeitos de relevo, criam uma sensação de profundidade e tridimensionalidade. Nos pátios, a água para além de trazer sempre frescura, é utilizada de formas bastante distintas e criativas. É necessário descobrir as suas capacidades dos materiais, tirando partido das suas potencialidades para estimular os nossos sentidos e transcender a aparência das formas construtivas.
Conclusão
Termino este artigo, referindo que quando falamos de sustentabilidade, poucos são os edifícios que respondem a tantos tópicos como a Alhambra. Ela tem passado de geração em geração, sempre como uma referência incontornável, com a qual podemos sempre aprender mais qualquer coisa. Estamos tão focados nos problemas do futuro e a pensar em como as novas tecnologias podem responder a uma nova forma de sustentabilidade, quando às vezes, basta recuarmos um pouco no tempo, e aprendermos as lições deixadas pelos nossos antepassados. Soluções essas que ainda hoje, nos presenteiam com resultados extraordinários!
Para além da Forma
MASSLAB / ECHO
Num tempo em que a Arquitetura se encontra suspensa entre espetáculo e impotência, entre o culto da Forma e a precariedade do comum, é urgente regressar ao essencial: repensar o projeto como gesto crítico. A Arquitetura não se cumpre apenas na forma construída — cumpre-se no modo como produz espaço para a vida, no modo como se relaciona com a Cidade; na sua capacidade de produzir espaço para o que ainda não é. Nas palavras de Pier Vittorio Aureli, fazer boa Arquitetura não é afirmar uma identidade, mas criar condições para o outro: a Arquitetura é boa quando se retira para que algo aconteça. Este princípio de subtração, de recusa da imposição formal, é simultaneamente um gesto de modéstia e de resistência.
A Cidade não é cenário nem paisagem — é condição contínua de produção e delito. Uma realidade instável e plural, composta por camadas que se sobrepõem, por contradições que se acumulam, por interdependências que se reorganizam. Não se reduz à sua morfologia; manifesta-se nos modos como se vive, trabalha, cuida e pertence. É um organismo político e afetivo, onde o espaço é sempre disputa e possibilidade. Neste território em permanente reformulação, a Arquitetura não se pode manter periférica nem autossuficiente — deve reequacionar o seu lugar. Projetar exigiu sempre mais do que desenhar: exige ler o território, compreender os fluxos do poder, pensar as estruturas invisíveis do comum e inscrever o gesto no campo ético, político e operativo do Direito à Cidade.
Para Lefebvre e Harvey, este permanece um dos conceitos fundamentais para pensar criticamente o futuro urbano. Não se trata de uma reivindicação genérica ao espaço, mas da possibilidade efetiva de participar na sua produção, transformação e apropriação. A Cidade, longe de ser uma entidade homogénea, é “diversa de si mesma”, fragmentada entre o real e o ideal, entre a memória e o desejo. É nesse campo de multiplicidade e tensão que o arquiteto deve atuar. Longe dos formalismos, mas perto das possibilidades. Contra o culto da forma, criando tração ao real, ativando o latente, operando a partir daquilo que existe. Nesse momento a disciplina reencontra a sua força crítica.
Quando reduzida a estilo ou mercadoria, a Arquitetura perde o seu potencial transformador. Num tempo de falsas utopias e distopias hiperconstruídas, a crítica de Manfredo Tafuri continua pertinente: a Arquitetura moderna fracassou não pela ausência de forma, mas pela sua submissão a lógicas externas — ao mercado, à propaganda, ao tecnocratismo. Reivindicar não é mitificar um passado ético, mas reposicionar o ofício: menos imagem, mais intenção; menos solução, mais pergunta.
Habitar é, nesse sentido, mais do que ocupar um espaço; é fazer parte de uma infraestrutura de cuidado. A Casa não pode ser entendida como um bem de consumo, mas como um dispositivo relacional que estrutura o tecido social. Helena Roseta fala de habitação como infraestrutura social: um sistema articulado que conecta o espaço doméstico ao espaço público, ao trabalho, à vizinhança, à mobilidade, à cidadania. Trata-se de superar os limites da “casa objeto” e pensar em ecologias do habitar.
Essa complexidade relacional exige novas formas tipológicas. Se, para Aldo Rossi, o tipo era uma constante histórica e morfológica, hoje deve ser pensado enquanto ferramenta de adaptação. As tipologias não são formas herméticas, mas estruturas abertas à transformação que operam numa lógica de incerteza. Habitar a contemporaneidade é habitar o instável: ciclos de vida descontínuos, dinâmicas económicas precárias, modos de vida em mutação. Isto exige arquiteturas reconfiguráveis, capazes de se ajustar ao tempo, ao uso e ao desejo. Como sugerem Lacaton & Vassal, não há forma a priori — há uma sucessão de decisões éticas, económicas e espaciais. O que importa é o gesto, não a imagem.
Neste campo expandido, a questão da escala torna-se central. A arquitetura não pode operar em compartimentos — deve inscrever-se na complexidade do território, articulando o doméstico com o urbano, o quarteirão com o distrito, a Rua com a Política. Escalar o projeto não é aumentar a dimensão, é aumentar a responsabilidade. Tafuri já o afirmava: não há arquitetura inocente — todo o projeto é um ato de tomada de posição, ideológica e material. Assim, a regeneração urbana não deve ser confundida com gentrificação encapotada, nem com operações estéticas. Regenerar implica escuta, reparação e redistribuição. Significa intervir com cuidado sobre o existente, como palimpsesto e não como tabula rasa.
Toda a Arquitetura é um gesto de poder. Mas o desafio reside em como tornar esse poder legível, partilhável, confrontável. Ao arquiteto cabe-lhe essa responsabilidade de não heterotopias, mas tornar o mundo visível — com todas as suas fraturas e possibilidades.
É necessário, por isso, recentrar a disciplina naquilo que Aureli chama “ato de fazer espaço”. A boa arquitetura não é a que impõe Forma, mas a que se retira para que algo aconteça — uma arquitetura que cede lugar, que “faz espaço para o outro”. Esta humildade — que não abdica de rigor — é uma forma de resistência à espetacularização. Tal como escreve Walter Benjamin, o carácter destrutivo não destrói por ódio, mas para abrir espaço: o seu lema é fazer lugar. É nesse vazio produtivo, limiar, que a Arquitetura reencontra a sua vocação pública.
Num tempo de urgência social, política e territorial, é essa a tarefa da disciplina: criar condições para a vida, construir o necessário com o mínimo, agir sobre a território com responsabilidade e imaginação.
Por fim, importa recusar o arquétipo do arquiteto demiurgo. A cidade não se desenha sozinha. A prática deve ser colaborativa, sensível à pluralidade e capaz de escutar. O futuro da disciplina passa por repensar os seus fundamentos, desierarquizar o saber e aceitar a fragilidade como condição operativa. A Arquitetura não é redentora — mas pode ser cuidadora. A Cidade é sempre um trabalho inacabado. A Arquitetura, quando é justa, é sempre uma forma de cuidado.
Do habitat que se regenera. Sistemas flexíveis com madeira como resposta aos desafios contemporâneos.
Rui Ferreira, Carlos Maia, Jorge M. Branco
Atualmente, e sobretudo no setor da construção, somos constantemente confrontados com a necessidade de encontrar respostas rápidas para os desafios demográficos, económicos e ambientais a uma escala global. Do ponto de vista social, com migrações quotidianas de diferentes escalas e contextos; do ponto de vista económico, com variações imprevisíveis dos valores de mercado; e, de forma incontornável, pela emergência climática (Hernández Falagán, 2021). Neste contexto, a necessidade de uma habitação flexível e adaptável tornou-se fundamental, constituindo uma característica essencial da arquitetura contemporânea.
A conceção de sistemas reversíveis permite, não só o conceito de “looping” (ciclos fechados), com vantagens ambientais, como também desencadeia múltiplos benefícios sociais, como a adaptação do espaço ao longo do tempo em função dos diferentes utilizadores que o possam habitar (Schmidt Iii & Austin, 2016). Assim, torna-se fundamental o desenvolvimento de sistemas construtivos baseados na modularidade e na pré-fabricação, especialmente com recurso a materiais naturais como a madeira, capazes de responder não só aos desafios ambientais e técnicos da indústria, mas também às exigências dos atuais modelos de habitação, promovendo maior flexibilidade e adaptabilidade do habitat.
Se, historicamente e culturalmente, a habitação sempre esteve associada a um modelo específico de coabitação e a um conjunto fixo de funções, no século XXI esta é marcada por incertezas quanto às necessidades funcionais dos diferentes grupos e às relações de coabitação doméstica, com uma consequente diminuição do número de famílias ditas tradicionais, o que se reflete nas alterações dos modelos de habitar. Como exemplo estão o aumento do número de agregados familiares unipessoais, uma maior proporção de pessoas idosas isoladas, uma maior procura de alojamento partilhado ou uma tendência crescente para trabalhar a partir de casa (Schneider & Till, 2007). Este último ponto em particular com um aumento significativo no contexto da crise pandémica que afetou o globo em 2020.
Paralelamente, a indústria da construção continua a ser um dos setores mais impactantes do ponto de vista ambiental, responsável por mais de 50% do consumo energético global e por cerca de 35% das emissões de CO₂ (Ferreira Silva et al., 2020). Os materiais de construção mais utilizados, como o aço ou o betão, revelam-se grandes poluidores contribuindo ativamente para o aumento desta pegada de carbono (Svatoš-Ražnjević et al., 2022). Neste sentido, a utilização da madeira (em condições de responsabilidade florestal), poderá permitir ao sector evitar as emissões substanciais de gases com efeito de estufa, reduzindo assim o seu impacto.
No entanto, uma mudança na matéria-prima não será suficiente, uma vez que grande parte da poluição causada pelo sector da construção está relacionada com as toneladas de RCD (Resíduos de Construção e Demolição) geradas por práticas de demolição prematuras e arbitrárias (Askar et al., 2021). Este tipo de pensamento consumista marcado pelo uso/descarte dos edifícios e dos seus componentes é resultado de um modelo de produção linear utilizado pela maioria das construtoras, devendo este ser substituído por formas alternativas de produção, que possam ser (re)projetadas, atualizadas ou desmontadas, minimizando a geração de resíduos.
A pré-fabricação e a modularidade foram, ao longo da história da arquitetura, estratégias fundamentais para viabilizar estes princípios, facilitando os processos de desmontagem no final do ciclo de vida útil dos edifícios (Ferreira Silva et al., 2020). A sua adoção, aliada ao uso da madeira e à incorporação de lógicas de adaptabilidade, poderá permitir uma transformação profunda no setor.
Por um lado, a adaptação das condições de habitabilidade dos espaços à sociedade atual permitirá prolongar a vida útil de um edifício, retardando o que poderia ser a sua demolição precoce, demolição essa que, como já referido, é responsável por uma grande parte dos resíduos do sector da construção. Por outro lado, tirando partido da maleabilidade técnica que as soluções préfabricadas e modulares, nomeadamente com recurso à madeira, será possível criar soluções espaciais diferentes dos modelos convencionais, ou seja, explorar a introdução de lógicas espaciais flexíveis.
De acordo com um estudo realizado sobre o tipo de habitação projetado atualmente em Portugal (especificamente nos concursos de habitação a custos controlados promovidos pela SRU e IHRU entre 2020 e 2023) foi possível retirar um conjunto de conclusões importantes sobre esta matéria. Na maior parte dos casos, mantém-se um modelo baseado em matrizes espaciais convencionais, assentes numa compartimentação rígida, construída a partir de uma ideologia herdada da família tradicional do século XX. Apenas cerca de 25% das propostas apresentaram algum tipo de flexibilidade, geralmente limitada à utilização de painéis deslizantes ou rebatíveis entre cozinha e sala.
Em termos construtivos verifica-se que se mantém a utilização de soluções lineares baseadas em recursos como o betão ou a alvenaria de tijolo, não existindo qualquer proposta que utilize a madeira ou outros materiais naturais nos elementos estruturais. Esta resistência à mudança é frequentemente atribuída à inércia dos modelos convencionais e à estrutura já estabelecida do setor, no entanto, a introdução recorrente de sistemas de fachadas pré-fabricadas ou o aparecimento de soluções modulares de zonas húmidas (cozinhas e casas de banho) demonstra uma vontade por parte dos projetistas numa mudança de paradigma, na procura de soluções mais eficientes, sustentáveis e rápidas de executar.
Com os avanços tecnológicos, a crescente digitalização dos processos construtivos e uma maior consciencialização ambiental, a construção modular em madeira apresenta-se hoje como uma oportunidade concreta para promover uma mudança significativa. Mais do que uma solução técnica, trata-se de um instrumento de transformação cultural, capaz de redefinir os paradigmas da arquitetura habitacional. Torna-se, por isso, essencial não só aprofundar o conhecimento e explorar o potencial destes sistemas, como também fomentar políticas públicas, estratégias de projeto e práticas construtivas que valorizem a adaptabilidade, a reversibilidade e o uso responsável dos recursos. Só assim será possível impulsionar uma verdadeira mudança na forma como concebemos e habitamos os nossos espaços, na procura de uma arquitetura mais flexível, sustentável e alinhada com os desafios contemporâneos.
Habitação e direito à cidade: políticas públicas, habitação social e acessibilidades.
Nuno Oliveira, Cláudio Nunes
O Primeiro Congresso Internacional de Habitação Pública, realizado no município de Oeiras, em Portugal, destacou este concelho como um exemplo notável das políticas públicas de habitação, em todo o país. Oeiras demonstra uma abordagem vanguardista, com o objetivo claro de atingir as suas metas e mitigar a falta de habitação acessível para jovens, idosos e pessoas carenciadas, promovendo uma vida digna e merecedora de desenvolvimento pessoal, profissional, social, económico e cultural.
O trabalho desenvolvido em Oeiras tem sido notável ao garantir o acesso a uma cidade desenvolvida, multicultural e acessível a todos os que desejam ali viver. Portugal tem enfrentado desafios significativos, especialmente após o confinamento devido à pandemia de SARS-CoV-19, que alterou os hábitos de todos nós em relação à forma como vivemos nas nossas casas e apartamentos. O teletrabalho e a telescola tornaram-se necessidades, transformando a maneira como utilizamos os nossos espaços.
Após este período tumultuoso, a sociedade começou a reemergir, mas com uma nova perspectiva sobre a habitação. Investidores viram uma oportunidade para criar novos empreendimentos de "luxo", como condomínios privados com jardins, piscinas e espaços para teletrabalho, direcionados para um público de classe alta, negligenciando as necessidades do cidadão comum. Adicionalmente, o aumento das taxas de juro sobrecarregou muitas famílias no pagamento dos empréstimos bancários para habitação, tornando o acesso à habitação um problema complexo.
Em resposta, o município de Oeiras comprometeu-se a desenvolver novos programas de habitação e a requalificar os bairros municipais, visando facilitar o acesso à habitação e revitalizar os bairros existentes. Este esforço inclui a melhoria das condições térmicas e acústicas nas habitações e áreas comuns, promovendo o bem-estar dos moradores e inquilinos do parque habitacional público.
De forma estratégica, o município procura integrar o parque público com o parque social de habitação, criando novas habitações que coexistam com os bairros já existentes. Esta abordagem inovadora tem sido aclamada pelos resultados benéficos para os moradores, jovens em busca de emancipação, pessoas carenciadas e idosos que procuram um local seguro e saudável para viver.
O Primeiro Congresso Internacional de Habitação Pública refletiu estes avanços através de palestras de especialistas, demonstrando o trabalho árduo dos funcionários de diversos departamentos na concretização destes programas de acesso à habitação e na transformação dos espaços existentes para garantir as melhores condições de habitabilidade.
A habitação pública, ou social, desempenha um papel crucial no desenvolvimento urbano, impulsionada pelas políticas públicas implementadas. Estas políticas devem coexistir e ser executadas de forma a assegurar um futuro urbano mais equitativo, flexível, resiliente e sustentável, garantindo o direito à cidade a todos os cidadãos de forma livre e justa, fomentando o bom funcionamento da sociedade.
A segregação habitacional não deve persistir com a construção de novos bairros em zonas periféricas. Em vez disso, devem ser priorizadas localizações próximas a áreas com bons acessos pedonais, transportes públicos e equipamentos sociais, de saúde, educação e diversão, promovendo a diversidade de classes e culturas.
O direito à habitação é fundamental, contudo, reconhecemos que a oferta estatal tem sido limitada e tardia. No entanto, é imperativo investir na criação de um parque habitacional robusto, digno e de qualidade, proporcionando às pessoas com dificuldades de acesso ao mercado privado a oportunidade de construir um lar, com todas as vivências e experiências que este proporciona.
As políticas públicas desempenham um papel fundamental no desenvolvimento de todos nós. Acredito que o país deve concentrar seus esforços no fortalecimento do parque habitacional e na revisão dos conceitos de habitação social e habitação pública. Idealmente, esses dois tipos de habitação deveriam ser consolidados, eliminando as distinções entre eles. Os recentes programas de habitação e a requalificação dos bairros têm contribuído significativamente para esse objetivo.
Como resultado, a cidade tornou-se mais homogênea, consolidada, resiliente, convidativa e segura para se viver.
A cidade é um espaço que pertence a todos nós. Uma cidade sem habitação não pode ser considerada completa, e a habitação é um direito fundamental, assim como a própria cidade. É essencial lembrar que as políticas públicas são o principal meio de acesso à cidade para muitos cidadãos.
Comunidade inter-geracional
Joana Martins
Entendemos que a habitação pode e deve contribuir para um envelhecimento saudável, inclusivo, ativo e com propósito. Hoje envelhece-se, na maioria dos casos, ora em habitação própria, ora em espaços construídos para o efeito, os lares de idosos que com um maior ou menor nível de conforto, são muito semelhantes na forma como encaram a velhice e o papel que os idosos podem e devem ter na sociedade, segregados e inativos.
Ao longo das últimas décadas promoveram-se várias ideias que contribuem para a desadequação das habitações às necessidades dos seus habitantes. Comecemos pelas áreas excessivas. A grande generalidade da população carece de educação e de informações essenciais sobre financiamento e sustentabilidade, o que compromete a sua capacidade de tomar uma decisão informada ao comprar uma habitação. As habitações são grandes, pobres energeticamente e com muito pouco conforto e questões como orientação e luz natural são ainda pouco valorizadas.
Em segundo lugar, incentivou-se a ideia de propriedade como uma garantia de segurança e de qualidade de vida. Apesar da subida desadequada e descontrolada dos preços das habitações, as gerações mais novas continuam a ver este investimento como um passo lógico e necessário nas suas vidas. Contudo, por incapacidade financeira estão a ser forçadas a procurar modelos alternativos.
Em terceiro lugar, tendencialmente os portugueses procuram adquirir uma habitação para toda a vida, o que inevitavelmente resulta em habitações desadequadas às necessidades familiares em vários momentos. Uma grande parte da população idosa envelhece em habitações com muitos quartos, frias e infelizmente, sozinha.
Recordamos de forma saudosista as aldeias, comunidades inter-geracionais de entreajuda nas quais as pessoas cresciam e envelheciam juntas. Realidade que é hoje muito rara. Os filhos saem e os pais ficam sozinhos, sem propósito ou rede de apoio, até ao momento em que não estão mais capazes. Os lares de idosos, aos quais todos têm horror, mas poucos têm acesso, apresentam-se então como única opção.
Urge encontrarmos alternativas ao envelhecimento como os conhecemos. Precisamos de bairros onde as pessoas sejam estimuladas a manter-se ativas e envolvidas na sociedade.
Apesar das críticas que temos a muitos destes pressupostos culturais que se criaram, entendemos que não podemos ignora-los, correndo o risco de procurar soluções que não se adaptam ao contexto português. Dessa forma, procuramos centrar esta proposta num modelo que podemos considerar estar entre o da propriedade e do arrendamento.
Para isso pensamos ser possível repensar o modelo cooperativo de habitação. Reconhecemos que o modelo promovido em maior escala nos anos 80 e 90 de cooperativas de habitação de propriedade individual foi essencial para o acesso a habitações de qualidade a preços mais acessíveis. Contudo, julgamos que fica aquém na resolução do problema aqui identificado.
Num país com um grande número de edifícios desocupados, mas ao mesmo tempo com uma grande falta de resposta de habitação, interessa-nos um modelo de cooperativa de propriedade coletiva ao qual acrescentamos uma vertente que consideramos essencial para atrair os proprietários portugueses, a possibilidade de permuta de habitações.
Partimos de um modelo de cooperativa de propriedade coletiva para a qual os cooperantes poderiam entrar através de um pagamento de quotas. Nesse caso pagariam sempre uma renda que se refletia num aumento da aquisição de quotas. (Nunca se tornando proprietários das habitações). A este princípio acrescentamos então a ideia de permuta de habitações. Assim, pessoas que fossem já proprietárias, poderiam de uma forma simples entrar na cooperativa “cedendo-lhe” as suas habitações. Essa cedência teria, caso fosse essa a vontade, de garantir uma outra habitação da cooperativa, mais adaptada às necessidades dessas pessoas. Caso o valor patrimonial não fosse equivalente, seriam compensadas com 2 ações da cooperativa, de forma a não perderem o seu investimento. Sabendo que as cooperativas procuram dar uma resposta não especulativa ao problema da habitação.
Assim, uma idosa entraria para a cooperativa “cedendo” a sua habitação T5 em troca de uma outra adequada às suas necessidades: um apartamento T1 adaptado a cadeira de rodas, com elevador e numa zona central da cidade. É natural e necessário que nos perguntemos porque é que alguém nesta situação vive sozinha num T5, com todos os problemas, custos e desconforto que isso acarreta, quando há famílias numerosas a precisar dessa habitação?
Cremos ainda que os bairros promovidos pela cooperativa deveriam provocar uma vivência ativa de todas as gerações. Metade da sociedade vive com pressa e a outra metade não encontra propósito para o seu tempo e, por isso, envelhece mais rapidamente. Propomos para isso um banco de horas de entreajuda promovido pela cooperativa. O jovem que ajuda o idoso a fazer as compras do supermercado pode receber em troca ajuda de babysitting. Parece-nos essencial que este sistema não dependa apenas da boa-vontade dos habitantes e de forma descomplexada propomos uma recompensa associada ao número de horas que cada um disponibiliza para o grupo.
Reconhecemos que o problema do acesso à habitação, por diferentes motivos, é transversal a toda a população. Relembramos que não pretendemos que este modelo seja aplicável a todas as faixas etárias e classes sociais. Numa primeira fase parece-nos que o modelo proposto poderá dar resposta a dois grupos: os idosos e os jovens que procuram emancipar-se. Apesar de estarem em fases muito diferentes das suas vidas, acreditamos que ambos beneficiariam muito se novos modelos habitacionais lhes permitissem co-habitar sem que para isso tivessem de abdicar da sua individualidade e autonomia.
Tesouros herdados do passado - digeridos, assimilados e recriados
Maria Luísa Forjaz
O atual panorama português no que concerne à habitação é extremamente preocupante. Ter um teto - que deveria ser um direito humano adquirido - torna-se cada vez menos tangível para famílias mais desfavorecidas e jovens que desejam iniciar uma vida independente.
Diversas medidas poderiam ser aplicadas para atenuar esta situação, porém, por consciência das minhas limitações e para não cair no erro de transformar este artigo num devaneio de ideologias e orientações políticas, focar-me-ei no campo que me é mais próximo - a arquitetura. Para tal, inevitavelmente, a opinião pessoal estará presente, não querendo, no entanto, afirmá-la como correta ou resposta para a resolução dos problemas habitacionais que a nossa sociedade enfrenta.
“O contexto atual marcado por um consumo de recursos sem precedentes, exige práticas sustentáveis e qualificadas de intervenção no ambiente construído, que passam pela reutilização de edifícios existentes.”¹
A par com a crise habitacional com que hoje nos deparamos, outras questões se têm vindo a arrastar, continuando sem aparente solução prática: a astronómica quantidade de edifícios habitacionais devolutos presentes na paisagem portuguesa (cerca de 12% dos imóveis!), com ênfase no contexto rural, onde a desertificação e o envelhecimento populacional são um facto. Com a evolução das redes viárias, a oposição cidade-campo tem-se vindo a desvanecer, no entanto, grande parte da população continua a habitar “cubículos” nos centros urbanos, cada vez mais claustrofóbicos e desqualificados.
O projeto que de seguida se apresenta trata um complexo agrícola, atualmente devoluto, localizado no lugar do Pastor, município de Penela (a 25 km do centro de Coimbra). Escolhe-se este projeto como exemplo por se centrar na reabilitação, onde o minucioso levantamento de materiais, técnicas e sistemas construtivos teve especial foco. Outra questão, não menos preocupante no panorama português relativo à arquitetura, é o gradual desaparecimento de técnicas e sistemas construtivos tradicionais, a par do decrescente número de pessoas detentoras do conhecimento para a sua execução. Pretende-se assim reiterar “a importância da cultura construtiva como legado a preservar, reutilizar e transmitir às gerações futuras.”²
A Quinta do Pastor conta com um conjunto edificado (1.600 m2 de área de implantação) composto por um edifício habitacional, alfaias, cortes, uma eira e um armazém, que se desenvolvem em volta de um pátio central, contando ainda com 2,2 ha de terreno agrícola associado.
A pedra e a madeira são os elementos fundamentais para estas construções, contanto com pontuais reforços estruturais em betão, feitos a posteriori. Nos edifícios das lavouras, os sistemas construtivos são simples e rudimentares, com as robustas vigas assentes diretamente nas paredes portantes formando telhados de 2 águas.
No edifício destinado à habitação, as marcas de diferentes tempos estão muito presentes. Respondendo à necessidade de mais espaço, o edifício foi alvo de sucessivos acrescentos, sendo quase possível adivinhar a sua história. Hoje, com famílias cada vez menos numerosas, torna-se praticamente impossível preencher edifícios habitacionais destas dimensões (7 quartos, 2 cozinhas, diversas salas, salinhas e salões), porém abrem-se as portas para novos modelos de habitacionais, centradas na ideia de “comunidade” para que, desta forma, se reestabeleça a vida e a dinâmica outrora existentes neste tipo de complexos.
Aqui, os sistemas construtivos são mais elaborados e a madeira ganha um especial foco, estando presente não só na estrutura dos pavimentos e dos telhados, mas também nas portas, portadas, caixilhos, guarnições e, evidentemente, no mobiliário. São ainda dignas de referência as expressivas paredes divisórias em tabique, adornadas por minuciosas escaiolas a simular diferentes mármores, com nuances de cor e veios delicadamente desenhados, que conferem personalidade à casa.Naturalmente, grande parte das patologias devem-se à ação do tempo, sendo visível o envelhecimento dos materiais e o seu desgaste pelo uso. São ainda de referir as anomalias causadas pela entrada de água através da cobertura exigindo, nestes pontos, uma intervenção mais profunda.
“Hoje, numa época de crise, em que se torna premente a sustentabilidade das construções, é cada vez mais importante o seu melhor entendimento, pois trata-se de construções melhoradas de forma empírica ao longo de séculos para que com escassos recursos melhor se adaptassem às condições locais”³
O projeto de reabilitação deste conjunto ronda a ótica da 3ª via de Távora, onde não existe a oposição velho-novo, mas sim uma continuidade intertemporal. Aposta-se no restauro dos materiais e sistemas preexistentes que forem passíveis de recuperar, substituído quando necessário, melhorando-os sempre que possível, para que correspondam às exigências e necessidades de hoje, mas preservando sempre a identidade e autenticidade das construções. Acima de tudo é necessário compreender profundamente os sistemas utilizados para que, no projeto, seja possível tomar decisões informadas, procurando compatibilidade com as técnicas correntes, tirando sempre o maior partido dos materiais construtivos.
Este artigo não pretende ser uma ode ao passado, nem uma recordação saudosista dos tempos idos. Pretende apenas recordar e fazer recordar as valências e a eficácia dos sistemas de construção tradicionais e, deste modo, aprender com o passado para que seja possível desenhar um futuro mais consciente e sustentável.
“Não tem sentido livrarmo-nos do passado para pensar apenas no futuro. A oposição entre o futuro e o passado é absurda. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; somos nós que, para o construir, lhe temos de dar tudo, dar-lhe até a nossa vida. Mas para dar, é necessário possuir, e nós não possuímos outra vida, outro sangue, além dos tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós."⁴
¹ Ferreira, T. C., Castañón, D. O., & Fantini, E. (2023). Fernando Távora - Novo/Antigo - Obras - Conservação, Reabilitação, Renovação, Restauro, Reconstrução, Requalificação, Salvaguarda. Porto: Edições Afrontamento, pág.11.
² Ibid., pág. 220.³ Mascarenhas, J. (2015). Sistemas de Construção: XV - Arquitetura Popular Portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, pág.65.
⁴ Weil, S. (2014). O enraizamento: prelúdio para uma declaração dos deveres para com o ser humano. Lisboa: Relógio d'Água, pág.50.
Reabilitação Corpo de Deus
- exercício sobre arquitetura corrente de valor patrimonialPedro Costa Gama, COLECTIVO arquitetos
O presente artigo reflete um caso de Reabilitação urbana num lote com logradouro, na Rua Corpo de Deus nºs 2 a 10, União de Freguesias de Coimbra. O processo iniciado pelo diagnóstico e estudos de 2016 foi licenciado em 2018 e construído ao longo da pandemia, até 2022.
Com uma frente de rua e disposição em L, dispõe de 3 panos de fachada tardoz. As empenas, a Norte e a Sul, correspondem ao 4º andar e sótão e resultam das paredes meadoras com os prédios contíguos intersetadas com a cobertura. Pela forte inclinação da rua medieval, o embasamento tem uma variação de cerca de 2 m de altura, entre a cota 29 e 31. A área de implantação é de 141,9 m2, sobrando 172,3 m2 de espaços exteriores privativos divididos por 3 cotas diferentes: saguão do 1º andar, pátio do 2º andar e jardim do 3º andar. A área bruta de construção existente é de 741,8 m2, sendo que desse total 69,9 m2 correspondem ao sótão – na época uma área de arrumos esconsos, sem condições para ser habitável e por isso omissa na Certidão Permanente da Conservatória. Em contexto de Centro Histórico, o lote encontrase entre vários Monumentos Nacionais, de forte presença no tecido urbano, assim como outros Imóveis de Interesse Público ou Arquitectónico. O próprio troço da Rua Corpo de Deus ocupa um papel de destaque na história da cidade uma vez que seria o limite Nordeste da Judiaria Velha, bairro dotado de Sinagoga, fonte e cemitério exclusivos.
O Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE) ditou uma operação urbanística enquadrada nas Obras de Alteração. Apesar das alterações propostas, em linha com as regras gerais e específicas do Regulamento Municipal (de Edificação, Recuperação e Reconversão Urbanística da Área afeta à candidatura da Universidade de Coimbra a Património Mundial da UNESCO - Aviso n.º 2129/2012), não se propôs qualquer aumento à área total de construção, implantação, ou altura das fachadas. O Regulamento defende a salvaguarda da zona central da Cidade pela preservação das tipologias tradicionais, sublinhando a necessidade de um equilíbrio entre os programas residencial, comercial e institucional. No perímetro são incluídas construções intramuros assim como arrabaldes, de cariz essencialmente medieval e composto maioritariamente por arquitectura corrente.
O edifício é caracterizado pela imponente fachada de 5 vãos em cada piso até ao 3º andar (janelas de abrir, sacada e guilhotina por esta ordem) e sobre cuja cornija existe como 4º andar um Acrescento em tabique estrutural, com apenas três vãos de sacada. Sobre este andar trabalham duas asnas de madeira que dividem o sótão e suportam a cobertura. Sendo que a espessura das fachadas e meadoras (constituídas por parede dupla de pedra calcária com terra barrenta batida entre as alvenarias) tem cerca de 85 cms de espessura, todo o interior a partir do 1º andar é construído por pavimentos e paramentos de vigamentos de madeira cruzados, sendo que a distância média entre tectos e soalhos é de 55 cm. As vigas principais "conectam" as 2 empenas, sendo que a partir desses elementos horizontais são lançadas as restantes estruturas de pavimento até às fachadas principal e tardoz. A estrutura interior trabalha com e sobre esses pavimentos, em paredes de tabique que funcionam não como suporte directo do piso de cima, mas como uma teia estrutural que se contraventa entre pavimentos e o núcleo da caixa de escada, igualmente em estrutura de frontal.
O prédio terá sofrido uma profunda reforma nos finais do séc. XIX, da qual se encontraram vestígios doutra caixa de escadas no lado Norte, tendo a nova estrutura passado a ocupar um lugar central no tardoz e a eixo da entrada principal. Na Planta de Coimbra de 1873-74, constatamos que a implantação não apresentava a disposição actual em L, apesar da profundidade da empena Sul ser a mesma, assim como não existia divisória à cota do jardim para o vizinho a Norte. Tecemos a hipótese da operação ter demolido construções e desaterrado terreno, para abrir o saguão e pátio tardozes no 1º e 2º andares, podendo ventilar e iluminar todos os pisos. Essa mancha de implantação poderia ser um único edifício, ou dois prédios diferentes – mais à escala do lote gótico que pontua toda a rua. Nesse caso a reforma terá sido uma aglutinação das estruturas numa só, com inevitável reformulação da volumetria total. O 4º andar foi acrescentado na mesma época, numa operação normalizada nestes edifícios de "carapaça" de alvenaria e "recheio" de madeira. Assim se adicionou a leve construção em frontal, ou chamel (paredes finas em estrutura cruzada de madeira, preenchidas a alvenaria avulsa e rebocadas com argamassas de cal e areia grossa). Este é o único andar em que os tectos são de gesso estucado sobre fasquiado, com frisos do mesmo material – ao contrário dos pisos inferiores em que os tectos são todos de madeira aparente, bem como as sancas. O Acrescento fez o sótão subir um andar, sendo que a caixa de escadas existente serve efectivamente cinco andares.
O principal objectivo do projecto foi o de conservar o partido arquitectónico do edifício existente, além dos sistemas e elementos construtivos que o compõem e lhe atribuem autenticidade enquanto documento histórico. As alterações propostas seguiram a emergência do diagnóstico de estabilidade, e da salubridade para todos os espaços (interiores ou exteriores), assim como pressupostos programáticos: a possibilidade das duas lojas serem exploradas por um só serviço, ou a vontade de dispor de dois apartamentos por piso (T2s e T1s no 1º e 2º andar, ao contrário de um único T3 no 3º e 4º andar, e T2 no sótão).
Pelo exercício de enquadrar no plano teórico as operações apresentadas no projecto, catalogamo-las por tipo de intervenção, conforme a terminologia difundida pelo ICOMOS e reproduzida para as intervenções deste tipo e problemática.
- CONSOLIDAÇÃO : restabelecimento ou reforço de materiais e elementos arquitetónicos, estruturais ou não, com utilização de técnicas e materiais do sistema construtivo original/tradicional. Apesar de muitas operações não serem baseadas só em técnicas e materiais tradicionais, seguiram a recomendação geral de adicionar a menor intrusão possível ao edifício.- PRESERVAÇÃO : retardar o processo de degradação e prolongar a sua existência, sem modificar os elementos existentes de tipologia original/tradicional e mantendo os vestígios de envelhecimento. Paredes, lanços de escada, pavimentos, rodapés, guarnições, folhas interiores, caixilhos da fachada principal, sancas e tectos que não apresentavam a necessidade de substituição, nem obstáculos ao novo programa, receberam o tratamento necessário para prolongar o seu 'tempo de vida'.
- RESTAURO : restituição, integral ou parcial, da situação original ou posterior à construção, deteriorada ou alterada em épocas sucessivas, visando a unidade e coerência da edificação, do ponto de vista de sua conceção e legibilidade originais, e a acentuação dos valores estéticos e históricos. Aos elementos arquitectónicos que não eram passíveis de ser mantidos foi dada preferência à substituição por réplicas. O objectivo global foi o de manter a identidade da arquitectura, onde não era já possível manter a autenticidade.
- DESCONSTRUÇÃO : o desmonte criterioso, parcial ou total, de um imóvel pela ordem inversa da construção, preservando os elementos construtivos e estruturais, aproveitando os componentes e os materiais reutilizáveis.
- REABILITAÇÃO : adequação e melhoramento das condições funcionais de um edifício, com a possibilidade de alteração da organização espacial, embora mantendo os princípios estruturantes, os elementos arquitetónicos e a imagem global exterior. Esta definição em particular poderia ser o resumo das principais preocupações e objectivos deste projecto, acrescentando a manutenção da imagem interior.
- TRANSLOCAÇÃO : desmontagem, remoção e remontagem de um edifício ou de partes, noutro local ou posição, com a recolocação idêntica dos seus componentes. Na escada exterior entre o jardim e a cozinha do 4º andar, em eminente ruína, propôs-se a desmontagem e remontagem. Nesse sentido, esta delicada operação foi executada na mesma localização e disposição, mas sobre novas fundações.
- REINTERPRETAÇÃO : reformulação de elementos existentes ou desaparecidos com base numa (re)construção de algumas características originais/tradicionais identificáveis (dimensões, geometrias, materiais, volumetria, proporções, métrica), distinguindo-se características que identifiquem a contemporaneidade da intervenção. A grande parte das operações propostas, foram na verdade reinterpretações de elementos e técnicas construtivas tradicionais, e não propriamente de partes ou elementos entretanto desaparecidos. Essa foi a filosofia criativa com que procuramos soluções para a relação harmoniosa entre as alterações/adições propostas e as formas e linguagem existentes, por meio de diferenças subtis no desenho de pormenorização.
Em defesa das boas práticas projetuais e construtivas, apresentamos a síntese deste processo, esperando que a partilha do conhecimento possa contribuir para um mercado mais transparente, projetos e obras mais qualificadas e uma sociedade de cidades mais justas: casas para todos.
Durante a próxima semana, serão anunciados dois textos selecionados para apresentação pública. Os respetivos autores serão convidados a partilhar as suas ideias no dia 11 de maio, durante a tarde, no FORMA PAVILION.
Todos os textos selecionados irão ser publicados na integra no site dos FORMA. Os seus resumos poderão ser consultados no festival.
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A curadoria e seleção dos textos é da inteira responsabilidade da organização.
A organização reserva-se o direito de, em caso de inexistência de quórum suficiente ou de os trabalhos submetidos não apresentarem a qualidade considerada necessária, não selecionar qualquer texto para publicação, apresentação ou atribuição de prémios.
HABITAÇÃO E CONSTRUÇÃO SUSTENTÁVEL:
DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA AS CIDADES CONTEMPORÂNEAS
O Festival Forma 2025 convida investigadores, arquitetos, urbanistas e todos os interessados a submeterem propostas para a nossa conferência dedicada aos desafios contemporâneos da habitação. A crise habitacional tornou-se um dos maiores desafios urbanos da atualidade. O aumento exponencial dos preços, a escassez de habitação acessível e a transformação dos bairros em territórios de especulação imobiliária têm afastado cada vez mais pessoas do direito fundamental a uma casa digna.
Como podemos repensar modelos alternativos de habitação que garantam o acesso equitativo à cidade? Como implementar novas formas de propriedade coletiva e gestão partilhada dos espaços urbanos? De que modo a arquitetura e o urbanismo podem contribuir para um habitat mais inclusivo e sustentável? Estes são alguns dos temas urgentes que convocam a reflexão crítica sobre a forma como habitamos e construímos as nossas cidades e transformamos a paisagem.
Além disso, a escolha das tipologias habitacionais desempenha um papel fundamental na forma como habitamos. Modelos de habitação cooperativa, co-housing e unidades flexíveis permitem responder às diferentes necessidades dos moradores ao longo do tempo, promovendo maior interação social e otimização de recursos. Como podemos repensar as tipologias habitacionais para melhor se adaptarem às realidades contemporâneas? Como articular a densidade urbana com o bem-estar individual e coletivo?
A madeira, enquanto material renovável, oferece uma resposta possível a estas preocupações. A sua utilização permite construções mais rápidas, eficientes e de baixo impacto ambiental. Como podem estas abordagens ser aplicadas em larga escala? Que exemplos e experiências podem informar o futuro da construção sustentável e acessível?
TEMAS PROPOSTOS
Os artigos podem abordar, mas não se limitam, aos seguintes tópicos:
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Habitação e direito à cidade: políticas públicas, habitação social e acessibilidade.
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Novos modelos habitacionais: cooperativas de habitação, co-housing, arrendamento acessível.
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Sustentabilidade na construção: impacto ambiental dos materiais, eficiência energética, estratégias circulares.
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Construção em madeira: inovação, viabilidade económica, regulamentação e boas práticas.
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Regeneração urbana e património habitacional: reabilitação sustentável, densificação urbana e proteção do edificado existente.
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Cidades e habitabilidade: desenho urbano, espaços públicos e qualidade de vida.
Inspirados pelo princípio dos arquitetos Lacaton & Vassal: "Em vez de demolir, remover, substituir- acrescentar, transformar e reutilizar.", incentivamos abordagens que priorizem a adaptação e requalificação dos espaços.
CALENDARIZAÇÃO
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Data limite para submissões: 26 de abril de 2025
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Comunicação dos textos selecionados: 2 de maio de 2025
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Apresentação no Festival Forma: 11 de maio de 2025
FORMA DE SUBMISSÃO
Os resumos deverão ter entre 300 e 500 palavras, incluindo título, autor(es) e afiliação institucional, e ser submetidos até 26 de abril de 2025. Os artigos completos dos trabalhos selecionados terão um limite entre 5.000 e 6.000 caracteres incluindo espaços. O ficheiro deverá ser submetido em formato PDF, formato A4. Poderão ser anexadas até duas imagens (em formato JPG com máx. 5MB cada), para acompanhar o texto, com os devidos créditos. Os trabalhos selecionados irão integrar uma publicação digital e impressa no âmbito do Festival FORMA.
SUBMISSÕES E CONTACTO
As submissões deverão ser enviadas através do site mediante o preenchimento do formulário para o efeito. Para mais informações entre em contacto através do e-mail info@if-ideasforward.pt.
Esperamos a vossa participação para um debate essencial sobre a habitação e a construção sustentável nas cidades do futuro.
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Seleção de Artigos para Publicação FORMA 2025
A equipa curatorial do Festival FORMA 2025 selecionou os oito textos apresentados neste dossier por se destacarem pela qualidade de escrita, densidade crítica e diversidade temática, contribuindo de forma exemplar para os objetivos definidos no Call for Papers. A seleção responde a uma leitura atenta dos critérios editoriais estabelecidos, nomeadamente: o rigor na abordagem dos temas, a articulação entre teoria e prática, a atualidade das propostas e a pertinência no contexto das transformações urbanas e sociais contemporâneas.
Os artigos abrangem, com enfoques distintos mas complementares, os principais tópicos propostos pelo regulamento, nomeadamente:
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Habitação e direito à cidade: com abordagens que evidenciam o papel das políticas públicas, a habitação social e a inclusão urbana.
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Novos modelos habitacionais: que exploram formas inovadoras de co-habitação, cooperativas e estruturas de acesso justo à habitação.
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Sustentabilidade na construção: refletida na escolha de materiais de baixo impacto, eficiência energética e circularidade dos sistemas construtivos.
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Construção em madeira: analisada como alternativa contemporânea e viável do ponto de vista técnico, económico e ambiental.
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Regeneração urbana e património habitacional: com propostas que respeitam e transformam o edificado existente, evitando a substituição pela destruição.
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Cidades e habitabilidade: ao tratar o espaço urbano como ecossistema relacional e político, onde o desenho e a arquitetura contribuem para a qualidade de vida.
Esta seleção reflete uma visão curatorial alinhada com o princípio orientador de Lacaton & Vassal — “Em vez de demolir, remover, substituir: acrescentar, transformar e reutilizar” — promovendo a arquitetura enquanto disciplina de mediação, cuidado e transformação responsável.
Textos selecionados:
DIGITALLY FABRICATED FUTURES:
EMPOWERING COOPERATIVE, SUSTAINABLE HOUSINGDaniela Silva
Short abstract:
This research integrates digital fabrication in early-stage design to create flexible co-housing models. By merging technological and social dimensions, it fosters inclusive processes, reduces environmental impact, and reshapes the architect’s collaborative role for equitable, sustainable urban development.
Full Paper: Introduction
Contemporary cities face intersecting crises of housing shortages, environmental threats, and shifting social dynamics (Maddalena, 2019). In response, digital fabrication presents architects with new modes of practice and the potential for collaborative, sustainable solutions (Kolarevic, 2003). By integrating digital fabrication from a project’s earliest stages, practitioners can reshape linear workflows into iterative, collective processes that empower both designers and end users.
Digital Fabrication in Architectural Practice
Digital fabrication broadly encompasses computer-controlled manufacturing methods—CNC milling, 3D printing, laser cutting—that translate computational models into physical outputs (Oxman, 2017). Historically, these tools were constrained to late-phase tasks like modelmaking, limiting their transformative potential (Ryder & Ion, 2018). Early-stage adoption allows rapid prototyping, continuous feedback loops, and agile design modifications, ensuring that building geometry, material efficiency, and structural performance align with sustainability goals (Menges, 2012). This approach also positions architects as facilitators of technological synergy, where parametric design fosters real-time collaboration among consultants, makers, and communities.
Cooperative Housing
Cooperative housing, featuring shared ownership or affordable rental models, exemplifies how architectural solutions can transcend siloed thinking (Suarez, 2020). By melding digital fabrication’s capacity for customization with resident participation, housing prototypes can more directly reflect collective aspirations and social equity (Oosterhuis, 2011). This shift redefines residents as co-creators rather than passive occupants, underscoring architecture’s social agency.
Materials and Sustainability
Employing renewable materials like timber in digitally fabricated construction aligns with contemporary imperatives to reduce carbon footprints and resource consumption (Kennedy, 2019). Precision cutting and modular assembly minimize waste, shorten construction times, and enable cost-effective experimentation (Habert et al., 2020). When these techniques intersect with parametric approaches, architects can optimize building envelopes, daylight access, and thermal performance, further mitigating environmental impacts (Maddalena, 2019).
Proposed Case Study: CoFab Living
“CoFab Living” demonstrates the synergy of digital fabrication and cooperative principles in a mid-rise timber structure adaptable to various urban settings. Parametric design software enables the customization of each housing module, accommodating diverse family sizes and lifestyles within a single project (Menges, 2012). Communal workshops located at the heart of the building invite residents to learn fabrication techniques, produce furniture, and collaboratively adapt shared spaces over time. This inclusive model not only fosters technological fluency but also instills a sense of collective responsibility for the evolving built environment.
Expanding the Architect’s Role
As architects adopt and lead digital fabrication processes, their role expands to encompass cross-disciplinary orchestration (Kolarevic, 2003). Collaboration with structural engineers, data specialists, and community stakeholders becomes intrinsic to an iterative workflow (Ryder & Ion, 2018). Architectural practice thus transcends the traditional role of formmaking, operating instead as a platform for negotiation among multiple actors—residents, policymakers, and construction teams alike. This multifaceted engagement can nurture designs that are resource-efficient, socially inclusive, and resilient in the face of evolving urban challenges (Oxman, 2017).
Conclusion
Digital fabrication, when integrated from the outset, has the power to transform housing into a participatory, sustainable endeavor. CoFab Living illustrates how advanced tools, renewable materials, and communal processes can converge to shape equitable urban futures. By bridging the technological and social spheres, architects can cultivate deeply collaborative ecosystems wherein residents become integral contributors to the housing design and fabrication process (Suarez, 2020). Such synergy recasts architecture as an ever-evolving cultural and environmental undertaking, guiding cities toward resilience, inclusivity, and responsible resource use.
References
- Habert, G., et al. (2020). “Environmental Impacts of Digital Fabrication in Construction.” Journal of Cleaner Production, 275, 122-131. - Kennedy, A. (2019). Timber Innovations for Sustainable Architecture. Routledge. - Kolarevic, B. (2003). Architecture in the Digital Age: Design and Manufacturing. Spon Press. - Maddalena, L. (2019). “Urban Housing at a Crossroads.” Housing Studies Review, 21(4), 45-59. - Menges, A. (2012). “Material Computation—Higher Integration in Morphogenetic Design.” Architectural Design, 82(2), 14-21. - Oxman, N. (2017). “Age of Entanglement.” Journal of Design and Science, 3(1). - Oosterhuis, K. (2011). Hyperbody: First Decade of Interactive Architecture. NAi Publishers. - Ryder, G., & Ion, W. (2018). “Collaborative Digital Workflows in Architecture.” International Journal of Architectural Computing, 16(1), 25-37. - Suarez, L. (2020). “Collective Housing and Social Fabrication.” In Proceedings of the Cooperative Design Conference, 167-175.
ALHAMBRA, UMA ARQUITETURA SUSTENTÁVEL
Bráulio Conceição
Hoje em dia falamos muito da sustentabilidade na construção, no impacto ambiental dos materiais, na eficiência energética e nas estratégias circulares, para investigar este tema, gostava de referenciar o complexo arquitetónico da Alhambra, em Granada, que, de uma maneira simples e eficaz, consegue responder a todas estas questões:
Sustentabilidade na Construção
A Alhambra é um grande complexo constituído por vários edifícios, dos quais podemos destacar, a fortaleza, os palácios nazaries, o palácio de Carlos V e o Generalife. As características arquitetónicas deste monumento são fruto de uma lenta maturação das formas, criadas por diversos autores em vários períodos.
A sustentabilidade desta construção está na sua capacidade em reaproveitar, adaptar e congregar, arquiteturas de diferentes estilos e tempos. Chega-nos hoje, como um conjunto de fragmentos que foram a consequência das várias intervenções ao longo da história. Este carácter de transformação começa nos numerosos sultões que reinaram a Península Ibérica, até à chegada dos reis católicos. Contudo, devido ao respeito e admiração que esses mesmos reis nutriam pela cultura oriental, eles souberam preservar o essencial que a arquitetura árabe tinha para oferecer.
Todos os intervenientes foram deixando as suas marcas no monumento; aberturas de vãos, restruturação de hortas e jardins, substituição de revestimentos, renovação de materiais, etc. A Alhambra é hoje, um dos palácios da civilização islâmica da Idade Média mais bem preservado e conservado, comprovando a capacidade de adaptação e transformação deste conjunto arquitetónico.
Impacto ambiental dos materiais
O impacto ambiental dos materiais diminui quando a arquitetura utiliza o meio geológico envolvente como fonte de matéria-prima para a sua construção. Utiliza aquilo que a “terra” lhe dá, reutilizando e repetindo esses mesmos materiais de forma racional, numa arquitetura despojada de elementos acessórios.
Assim, as superfícies da arquitetura da Alhambra demonstram uma certa simplicidade, ou ausência de informação, que é compensada pela variedade introduzida pela ornamentação. Isto cria um equilíbrio entre a falta e o excesso de informação. A repetição da ornamentação não se torna maçadora, pelo contrário, numa lógica de continuidade, através de jogos de texturas, luzes, cores e geometria, acaba por estimular o visitante.
Apesar dos interiores da Alhambra serem marcados por fortes simetrias e geometrias, estes não transmitem uma sensação de rigidez e estaticismo, e isso deve-se, em grande parte, à presença destas “superfícies vivas”. A luz que transita à medida que as horas passam, transmite uma certa sensualidade nas formas arquitetónicas, nas colunas, nos muros, nos tetos, na água, nos azulejos… e isso faz com que a nossa perceção se transforme ao percorrer o espaço.
Eficiência Energética Passiva
É possível alcançar uma eficiência energética passiva, através da escolha correta dos materiais e da integração de vários elementos da natureza. A arquitetura não é só construção, também é vazio, como um espaço de transição ou um jardim, permitindo o equilíbrio e conforto da atmosfera dos espaços interiores.
A arquitetura da Alhambra deixa-se contaminar pela natureza. A natureza aparece, não só à escala do território, no frondoso bosque que cresce no sopé da colina onde se implanta a fortaleza, mas também à escala doméstica, nos pátios que muitas vezes são jardins privados. No caso específico da Alhambra, os jardins “espreitam” sobre a paisagem, funcionando como jardins miradouro.
Outra característica destes jardins árabes, está relacionada com a capacidade de adaptação da sua linguagem, combinando a atividade agrícola com a transformação artística da natureza, onde a presença da água e da vegetação ganha protagonismo, transmitindo tranquilidade e abundância. Normalmente, estes jardins serviam como pontos de chegada da água, que era encaminhada por um complexo sistema hidráulico, servindo como rega da paisagem agrícola
Estratégias circulares
As estratégias circulares em arquitetura, estão relacionadas com a habilidade com que se manipula a utilização do mesmo material, não só numa lógica de poética espacial, mas também numa lógica de reutilização e economia de meios.
Na Alhambra, a natureza está sempre de “mão dada” com os materiais, que são utilizados de forma bastante imaginativa. Há uma habilidade especial em como se controlam as aparências visuais. O significado dos materiais nunca se esgota, e aparece disposto de maneiras distintas, de forma a proporcionar novas experiências.
As paredes de adobe são muros pesados, imóveis, que garantem a perenidade desta arquitetura. O mármore que tanto é utilizado no pavimento como nas colunas, garante nobreza e delicadeza. A madeira utilizada nos tetos, na ornamentação e nas gelosias dos vãos, transmite uma sensação de aconchego e cria uma atmosfera acolhedora e calorosa. Os azulejos com os seus padrões complexos e efeitos de relevo, criam uma sensação de profundidade e tridimensionalidade. Nos pátios, a água para além de trazer sempre frescura, é utilizada de formas bastante distintas e criativas. É necessário descobrir as suas capacidades dos materiais, tirando partido das suas potencialidades para estimular os nossos sentidos e transcender a aparência das formas construtivas.
Conclusão
Termino este artigo, referindo que quando falamos de sustentabilidade, poucos são os edifícios que respondem a tantos tópicos como a Alhambra. Ela tem passado de geração em geração, sempre como uma referência incontornável, com a qual podemos sempre aprender mais qualquer coisa. Estamos tão focados nos problemas do futuro e a pensar em como as novas tecnologias podem responder a uma nova forma de sustentabilidade, quando às vezes, basta recuarmos um pouco no tempo, e aprendermos as lições deixadas pelos nossos antepassados. Soluções essas que ainda hoje, nos presenteiam com resultados extraordinários!
Para além da Forma
MASSLAB / ECHO
Num tempo em que a Arquitetura se encontra suspensa entre espetáculo e impotência, entre o culto da Forma e a precariedade do comum, é urgente regressar ao essencial: repensar o projeto como gesto crítico. A Arquitetura não se cumpre apenas na forma construída — cumpre-se no modo como produz espaço para a vida, no modo como se relaciona com a Cidade; na sua capacidade de produzir espaço para o que ainda não é. Nas palavras de Pier Vittorio Aureli, fazer boa Arquitetura não é afirmar uma identidade, mas criar condições para o outro: a Arquitetura é boa quando se retira para que algo aconteça. Este princípio de subtração, de recusa da imposição formal, é simultaneamente um gesto de modéstia e de resistência.
A Cidade não é cenário nem paisagem — é condição contínua de produção e delito. Uma realidade instável e plural, composta por camadas que se sobrepõem, por contradições que se acumulam, por interdependências que se reorganizam. Não se reduz à sua morfologia; manifesta-se nos modos como se vive, trabalha, cuida e pertence. É um organismo político e afetivo, onde o espaço é sempre disputa e possibilidade. Neste território em permanente reformulação, a Arquitetura não se pode manter periférica nem autossuficiente — deve reequacionar o seu lugar. Projetar exigiu sempre mais do que desenhar: exige ler o território, compreender os fluxos do poder, pensar as estruturas invisíveis do comum e inscrever o gesto no campo ético, político e operativo do Direito à Cidade.
Para Lefebvre e Harvey, este permanece um dos conceitos fundamentais para pensar criticamente o futuro urbano. Não se trata de uma reivindicação genérica ao espaço, mas da possibilidade efetiva de participar na sua produção, transformação e apropriação. A Cidade, longe de ser uma entidade homogénea, é “diversa de si mesma”, fragmentada entre o real e o ideal, entre a memória e o desejo. É nesse campo de multiplicidade e tensão que o arquiteto deve atuar. Longe dos formalismos, mas perto das possibilidades. Contra o culto da forma, criando tração ao real, ativando o latente, operando a partir daquilo que existe. Nesse momento a disciplina reencontra a sua força crítica.
Quando reduzida a estilo ou mercadoria, a Arquitetura perde o seu potencial transformador. Num tempo de falsas utopias e distopias hiperconstruídas, a crítica de Manfredo Tafuri continua pertinente: a Arquitetura moderna fracassou não pela ausência de forma, mas pela sua submissão a lógicas externas — ao mercado, à propaganda, ao tecnocratismo. Reivindicar não é mitificar um passado ético, mas reposicionar o ofício: menos imagem, mais intenção; menos solução, mais pergunta.
Habitar é, nesse sentido, mais do que ocupar um espaço; é fazer parte de uma infraestrutura de cuidado. A Casa não pode ser entendida como um bem de consumo, mas como um dispositivo relacional que estrutura o tecido social. Helena Roseta fala de habitação como infraestrutura social: um sistema articulado que conecta o espaço doméstico ao espaço público, ao trabalho, à vizinhança, à mobilidade, à cidadania. Trata-se de superar os limites da “casa objeto” e pensar em ecologias do habitar.
Essa complexidade relacional exige novas formas tipológicas. Se, para Aldo Rossi, o tipo era uma constante histórica e morfológica, hoje deve ser pensado enquanto ferramenta de adaptação. As tipologias não são formas herméticas, mas estruturas abertas à transformação que operam numa lógica de incerteza. Habitar a contemporaneidade é habitar o instável: ciclos de vida descontínuos, dinâmicas económicas precárias, modos de vida em mutação. Isto exige arquiteturas reconfiguráveis, capazes de se ajustar ao tempo, ao uso e ao desejo. Como sugerem Lacaton & Vassal, não há forma a priori — há uma sucessão de decisões éticas, económicas e espaciais. O que importa é o gesto, não a imagem.
Neste campo expandido, a questão da escala torna-se central. A arquitetura não pode operar em compartimentos — deve inscrever-se na complexidade do território, articulando o doméstico com o urbano, o quarteirão com o distrito, a Rua com a Política. Escalar o projeto não é aumentar a dimensão, é aumentar a responsabilidade. Tafuri já o afirmava: não há arquitetura inocente — todo o projeto é um ato de tomada de posição, ideológica e material. Assim, a regeneração urbana não deve ser confundida com gentrificação encapotada, nem com operações estéticas. Regenerar implica escuta, reparação e redistribuição. Significa intervir com cuidado sobre o existente, como palimpsesto e não como tabula rasa.
Toda a Arquitetura é um gesto de poder. Mas o desafio reside em como tornar esse poder legível, partilhável, confrontável. Ao arquiteto cabe-lhe essa responsabilidade de não heterotopias, mas tornar o mundo visível — com todas as suas fraturas e possibilidades.
É necessário, por isso, recentrar a disciplina naquilo que Aureli chama “ato de fazer espaço”. A boa arquitetura não é a que impõe Forma, mas a que se retira para que algo aconteça — uma arquitetura que cede lugar, que “faz espaço para o outro”. Esta humildade — que não abdica de rigor — é uma forma de resistência à espetacularização. Tal como escreve Walter Benjamin, o carácter destrutivo não destrói por ódio, mas para abrir espaço: o seu lema é fazer lugar. É nesse vazio produtivo, limiar, que a Arquitetura reencontra a sua vocação pública.
Num tempo de urgência social, política e territorial, é essa a tarefa da disciplina: criar condições para a vida, construir o necessário com o mínimo, agir sobre a território com responsabilidade e imaginação.
Por fim, importa recusar o arquétipo do arquiteto demiurgo. A cidade não se desenha sozinha. A prática deve ser colaborativa, sensível à pluralidade e capaz de escutar. O futuro da disciplina passa por repensar os seus fundamentos, desierarquizar o saber e aceitar a fragilidade como condição operativa. A Arquitetura não é redentora — mas pode ser cuidadora. A Cidade é sempre um trabalho inacabado. A Arquitetura, quando é justa, é sempre uma forma de cuidado.
Do habitat que se regenera. Sistemas flexíveis com madeira como resposta aos desafios contemporâneos.
Rui Ferreira, Carlos Maia, Jorge M. Branco
Atualmente, e sobretudo no setor da construção, somos constantemente confrontados com a necessidade de encontrar respostas rápidas para os desafios demográficos, económicos e ambientais a uma escala global. Do ponto de vista social, com migrações quotidianas de diferentes escalas e contextos; do ponto de vista económico, com variações imprevisíveis dos valores de mercado; e, de forma incontornável, pela emergência climática (Hernández Falagán, 2021). Neste contexto, a necessidade de uma habitação flexível e adaptável tornou-se fundamental, constituindo uma característica essencial da arquitetura contemporânea.
A conceção de sistemas reversíveis permite, não só o conceito de “looping” (ciclos fechados), com vantagens ambientais, como também desencadeia múltiplos benefícios sociais, como a adaptação do espaço ao longo do tempo em função dos diferentes utilizadores que o possam habitar (Schmidt Iii & Austin, 2016). Assim, torna-se fundamental o desenvolvimento de sistemas construtivos baseados na modularidade e na pré-fabricação, especialmente com recurso a materiais naturais como a madeira, capazes de responder não só aos desafios ambientais e técnicos da indústria, mas também às exigências dos atuais modelos de habitação, promovendo maior flexibilidade e adaptabilidade do habitat.
Se, historicamente e culturalmente, a habitação sempre esteve associada a um modelo específico de coabitação e a um conjunto fixo de funções, no século XXI esta é marcada por incertezas quanto às necessidades funcionais dos diferentes grupos e às relações de coabitação doméstica, com uma consequente diminuição do número de famílias ditas tradicionais, o que se reflete nas alterações dos modelos de habitar. Como exemplo estão o aumento do número de agregados familiares unipessoais, uma maior proporção de pessoas idosas isoladas, uma maior procura de alojamento partilhado ou uma tendência crescente para trabalhar a partir de casa (Schneider & Till, 2007). Este último ponto em particular com um aumento significativo no contexto da crise pandémica que afetou o globo em 2020.
Paralelamente, a indústria da construção continua a ser um dos setores mais impactantes do ponto de vista ambiental, responsável por mais de 50% do consumo energético global e por cerca de 35% das emissões de CO₂ (Ferreira Silva et al., 2020). Os materiais de construção mais utilizados, como o aço ou o betão, revelam-se grandes poluidores contribuindo ativamente para o aumento desta pegada de carbono (Svatoš-Ražnjević et al., 2022). Neste sentido, a utilização da madeira (em condições de responsabilidade florestal), poderá permitir ao sector evitar as emissões substanciais de gases com efeito de estufa, reduzindo assim o seu impacto.
No entanto, uma mudança na matéria-prima não será suficiente, uma vez que grande parte da poluição causada pelo sector da construção está relacionada com as toneladas de RCD (Resíduos de Construção e Demolição) geradas por práticas de demolição prematuras e arbitrárias (Askar et al., 2021). Este tipo de pensamento consumista marcado pelo uso/descarte dos edifícios e dos seus componentes é resultado de um modelo de produção linear utilizado pela maioria das construtoras, devendo este ser substituído por formas alternativas de produção, que possam ser (re)projetadas, atualizadas ou desmontadas, minimizando a geração de resíduos.
A pré-fabricação e a modularidade foram, ao longo da história da arquitetura, estratégias fundamentais para viabilizar estes princípios, facilitando os processos de desmontagem no final do ciclo de vida útil dos edifícios (Ferreira Silva et al., 2020). A sua adoção, aliada ao uso da madeira e à incorporação de lógicas de adaptabilidade, poderá permitir uma transformação profunda no setor.
Por um lado, a adaptação das condições de habitabilidade dos espaços à sociedade atual permitirá prolongar a vida útil de um edifício, retardando o que poderia ser a sua demolição precoce, demolição essa que, como já referido, é responsável por uma grande parte dos resíduos do sector da construção. Por outro lado, tirando partido da maleabilidade técnica que as soluções préfabricadas e modulares, nomeadamente com recurso à madeira, será possível criar soluções espaciais diferentes dos modelos convencionais, ou seja, explorar a introdução de lógicas espaciais flexíveis.
De acordo com um estudo realizado sobre o tipo de habitação projetado atualmente em Portugal (especificamente nos concursos de habitação a custos controlados promovidos pela SRU e IHRU entre 2020 e 2023) foi possível retirar um conjunto de conclusões importantes sobre esta matéria. Na maior parte dos casos, mantém-se um modelo baseado em matrizes espaciais convencionais, assentes numa compartimentação rígida, construída a partir de uma ideologia herdada da família tradicional do século XX. Apenas cerca de 25% das propostas apresentaram algum tipo de flexibilidade, geralmente limitada à utilização de painéis deslizantes ou rebatíveis entre cozinha e sala.
Em termos construtivos verifica-se que se mantém a utilização de soluções lineares baseadas em recursos como o betão ou a alvenaria de tijolo, não existindo qualquer proposta que utilize a madeira ou outros materiais naturais nos elementos estruturais. Esta resistência à mudança é frequentemente atribuída à inércia dos modelos convencionais e à estrutura já estabelecida do setor, no entanto, a introdução recorrente de sistemas de fachadas pré-fabricadas ou o aparecimento de soluções modulares de zonas húmidas (cozinhas e casas de banho) demonstra uma vontade por parte dos projetistas numa mudança de paradigma, na procura de soluções mais eficientes, sustentáveis e rápidas de executar.
Com os avanços tecnológicos, a crescente digitalização dos processos construtivos e uma maior consciencialização ambiental, a construção modular em madeira apresenta-se hoje como uma oportunidade concreta para promover uma mudança significativa. Mais do que uma solução técnica, trata-se de um instrumento de transformação cultural, capaz de redefinir os paradigmas da arquitetura habitacional. Torna-se, por isso, essencial não só aprofundar o conhecimento e explorar o potencial destes sistemas, como também fomentar políticas públicas, estratégias de projeto e práticas construtivas que valorizem a adaptabilidade, a reversibilidade e o uso responsável dos recursos. Só assim será possível impulsionar uma verdadeira mudança na forma como concebemos e habitamos os nossos espaços, na procura de uma arquitetura mais flexível, sustentável e alinhada com os desafios contemporâneos.
Habitação e direito à cidade: políticas públicas, habitação social e acessibilidades.
Nuno Oliveira, Cláudio Nunes
O Primeiro Congresso Internacional de Habitação Pública, realizado no município de Oeiras, em Portugal, destacou este concelho como um exemplo notável das políticas públicas de habitação, em todo o país. Oeiras demonstra uma abordagem vanguardista, com o objetivo claro de atingir as suas metas e mitigar a falta de habitação acessível para jovens, idosos e pessoas carenciadas, promovendo uma vida digna e merecedora de desenvolvimento pessoal, profissional, social, económico e cultural.
O trabalho desenvolvido em Oeiras tem sido notável ao garantir o acesso a uma cidade desenvolvida, multicultural e acessível a todos os que desejam ali viver. Portugal tem enfrentado desafios significativos, especialmente após o confinamento devido à pandemia de SARS-CoV-19, que alterou os hábitos de todos nós em relação à forma como vivemos nas nossas casas e apartamentos. O teletrabalho e a telescola tornaram-se necessidades, transformando a maneira como utilizamos os nossos espaços.
Após este período tumultuoso, a sociedade começou a reemergir, mas com uma nova perspectiva sobre a habitação. Investidores viram uma oportunidade para criar novos empreendimentos de "luxo", como condomínios privados com jardins, piscinas e espaços para teletrabalho, direcionados para um público de classe alta, negligenciando as necessidades do cidadão comum. Adicionalmente, o aumento das taxas de juro sobrecarregou muitas famílias no pagamento dos empréstimos bancários para habitação, tornando o acesso à habitação um problema complexo.
Em resposta, o município de Oeiras comprometeu-se a desenvolver novos programas de habitação e a requalificar os bairros municipais, visando facilitar o acesso à habitação e revitalizar os bairros existentes. Este esforço inclui a melhoria das condições térmicas e acústicas nas habitações e áreas comuns, promovendo o bem-estar dos moradores e inquilinos do parque habitacional público.
De forma estratégica, o município procura integrar o parque público com o parque social de habitação, criando novas habitações que coexistam com os bairros já existentes. Esta abordagem inovadora tem sido aclamada pelos resultados benéficos para os moradores, jovens em busca de emancipação, pessoas carenciadas e idosos que procuram um local seguro e saudável para viver.
O Primeiro Congresso Internacional de Habitação Pública refletiu estes avanços através de palestras de especialistas, demonstrando o trabalho árduo dos funcionários de diversos departamentos na concretização destes programas de acesso à habitação e na transformação dos espaços existentes para garantir as melhores condições de habitabilidade.
A habitação pública, ou social, desempenha um papel crucial no desenvolvimento urbano, impulsionada pelas políticas públicas implementadas. Estas políticas devem coexistir e ser executadas de forma a assegurar um futuro urbano mais equitativo, flexível, resiliente e sustentável, garantindo o direito à cidade a todos os cidadãos de forma livre e justa, fomentando o bom funcionamento da sociedade.
A segregação habitacional não deve persistir com a construção de novos bairros em zonas periféricas. Em vez disso, devem ser priorizadas localizações próximas a áreas com bons acessos pedonais, transportes públicos e equipamentos sociais, de saúde, educação e diversão, promovendo a diversidade de classes e culturas.
O direito à habitação é fundamental, contudo, reconhecemos que a oferta estatal tem sido limitada e tardia. No entanto, é imperativo investir na criação de um parque habitacional robusto, digno e de qualidade, proporcionando às pessoas com dificuldades de acesso ao mercado privado a oportunidade de construir um lar, com todas as vivências e experiências que este proporciona.
As políticas públicas desempenham um papel fundamental no desenvolvimento de todos nós. Acredito que o país deve concentrar seus esforços no fortalecimento do parque habitacional e na revisão dos conceitos de habitação social e habitação pública. Idealmente, esses dois tipos de habitação deveriam ser consolidados, eliminando as distinções entre eles. Os recentes programas de habitação e a requalificação dos bairros têm contribuído significativamente para esse objetivo.
Como resultado, a cidade tornou-se mais homogênea, consolidada, resiliente, convidativa e segura para se viver.
A cidade é um espaço que pertence a todos nós. Uma cidade sem habitação não pode ser considerada completa, e a habitação é um direito fundamental, assim como a própria cidade. É essencial lembrar que as políticas públicas são o principal meio de acesso à cidade para muitos cidadãos.
Comunidade inter-geracional
Joana Martins
Entendemos que a habitação pode e deve contribuir para um envelhecimento saudável, inclusivo, ativo e com propósito. Hoje envelhece-se, na maioria dos casos, ora em habitação própria, ora em espaços construídos para o efeito, os lares de idosos que com um maior ou menor nível de conforto, são muito semelhantes na forma como encaram a velhice e o papel que os idosos podem e devem ter na sociedade, segregados e inativos.
Ao longo das últimas décadas promoveram-se várias ideias que contribuem para a desadequação das habitações às necessidades dos seus habitantes. Comecemos pelas áreas excessivas. A grande generalidade da população carece de educação e de informações essenciais sobre financiamento e sustentabilidade, o que compromete a sua capacidade de tomar uma decisão informada ao comprar uma habitação. As habitações são grandes, pobres energeticamente e com muito pouco conforto e questões como orientação e luz natural são ainda pouco valorizadas.
Em segundo lugar, incentivou-se a ideia de propriedade como uma garantia de segurança e de qualidade de vida. Apesar da subida desadequada e descontrolada dos preços das habitações, as gerações mais novas continuam a ver este investimento como um passo lógico e necessário nas suas vidas. Contudo, por incapacidade financeira estão a ser forçadas a procurar modelos alternativos.
Em terceiro lugar, tendencialmente os portugueses procuram adquirir uma habitação para toda a vida, o que inevitavelmente resulta em habitações desadequadas às necessidades familiares em vários momentos. Uma grande parte da população idosa envelhece em habitações com muitos quartos, frias e infelizmente, sozinha.
Recordamos de forma saudosista as aldeias, comunidades inter-geracionais de entreajuda nas quais as pessoas cresciam e envelheciam juntas. Realidade que é hoje muito rara. Os filhos saem e os pais ficam sozinhos, sem propósito ou rede de apoio, até ao momento em que não estão mais capazes. Os lares de idosos, aos quais todos têm horror, mas poucos têm acesso, apresentam-se então como única opção.
Urge encontrarmos alternativas ao envelhecimento como os conhecemos. Precisamos de bairros onde as pessoas sejam estimuladas a manter-se ativas e envolvidas na sociedade.
Apesar das críticas que temos a muitos destes pressupostos culturais que se criaram, entendemos que não podemos ignora-los, correndo o risco de procurar soluções que não se adaptam ao contexto português. Dessa forma, procuramos centrar esta proposta num modelo que podemos considerar estar entre o da propriedade e do arrendamento.
Para isso pensamos ser possível repensar o modelo cooperativo de habitação. Reconhecemos que o modelo promovido em maior escala nos anos 80 e 90 de cooperativas de habitação de propriedade individual foi essencial para o acesso a habitações de qualidade a preços mais acessíveis. Contudo, julgamos que fica aquém na resolução do problema aqui identificado.
Num país com um grande número de edifícios desocupados, mas ao mesmo tempo com uma grande falta de resposta de habitação, interessa-nos um modelo de cooperativa de propriedade coletiva ao qual acrescentamos uma vertente que consideramos essencial para atrair os proprietários portugueses, a possibilidade de permuta de habitações.
Partimos de um modelo de cooperativa de propriedade coletiva para a qual os cooperantes poderiam entrar através de um pagamento de quotas. Nesse caso pagariam sempre uma renda que se refletia num aumento da aquisição de quotas. (Nunca se tornando proprietários das habitações). A este princípio acrescentamos então a ideia de permuta de habitações. Assim, pessoas que fossem já proprietárias, poderiam de uma forma simples entrar na cooperativa “cedendo-lhe” as suas habitações. Essa cedência teria, caso fosse essa a vontade, de garantir uma outra habitação da cooperativa, mais adaptada às necessidades dessas pessoas. Caso o valor patrimonial não fosse equivalente, seriam compensadas com 2 ações da cooperativa, de forma a não perderem o seu investimento. Sabendo que as cooperativas procuram dar uma resposta não especulativa ao problema da habitação.
Assim, uma idosa entraria para a cooperativa “cedendo” a sua habitação T5 em troca de uma outra adequada às suas necessidades: um apartamento T1 adaptado a cadeira de rodas, com elevador e numa zona central da cidade. É natural e necessário que nos perguntemos porque é que alguém nesta situação vive sozinha num T5, com todos os problemas, custos e desconforto que isso acarreta, quando há famílias numerosas a precisar dessa habitação?
Cremos ainda que os bairros promovidos pela cooperativa deveriam provocar uma vivência ativa de todas as gerações. Metade da sociedade vive com pressa e a outra metade não encontra propósito para o seu tempo e, por isso, envelhece mais rapidamente. Propomos para isso um banco de horas de entreajuda promovido pela cooperativa. O jovem que ajuda o idoso a fazer as compras do supermercado pode receber em troca ajuda de babysitting. Parece-nos essencial que este sistema não dependa apenas da boa-vontade dos habitantes e de forma descomplexada propomos uma recompensa associada ao número de horas que cada um disponibiliza para o grupo.
Reconhecemos que o problema do acesso à habitação, por diferentes motivos, é transversal a toda a população. Relembramos que não pretendemos que este modelo seja aplicável a todas as faixas etárias e classes sociais. Numa primeira fase parece-nos que o modelo proposto poderá dar resposta a dois grupos: os idosos e os jovens que procuram emancipar-se. Apesar de estarem em fases muito diferentes das suas vidas, acreditamos que ambos beneficiariam muito se novos modelos habitacionais lhes permitissem co-habitar sem que para isso tivessem de abdicar da sua individualidade e autonomia.
Tesouros herdados do passado - digeridos, assimilados e recriados
Maria Luísa Forjaz
O atual panorama português no que concerne à habitação é extremamente preocupante. Ter um teto - que deveria ser um direito humano adquirido - torna-se cada vez menos tangível para famílias mais desfavorecidas e jovens que desejam iniciar uma vida independente.
Diversas medidas poderiam ser aplicadas para atenuar esta situação, porém, por consciência das minhas limitações e para não cair no erro de transformar este artigo num devaneio de ideologias e orientações políticas, focar-me-ei no campo que me é mais próximo - a arquitetura. Para tal, inevitavelmente, a opinião pessoal estará presente, não querendo, no entanto, afirmá-la como correta ou resposta para a resolução dos problemas habitacionais que a nossa sociedade enfrenta.
“O contexto atual marcado por um consumo de recursos sem precedentes, exige práticas sustentáveis e qualificadas de intervenção no ambiente construído, que passam pela reutilização de edifícios existentes.”¹
A par com a crise habitacional com que hoje nos deparamos, outras questões se têm vindo a arrastar, continuando sem aparente solução prática: a astronómica quantidade de edifícios habitacionais devolutos presentes na paisagem portuguesa (cerca de 12% dos imóveis!), com ênfase no contexto rural, onde a desertificação e o envelhecimento populacional são um facto. Com a evolução das redes viárias, a oposição cidade-campo tem-se vindo a desvanecer, no entanto, grande parte da população continua a habitar “cubículos” nos centros urbanos, cada vez mais claustrofóbicos e desqualificados.
O projeto que de seguida se apresenta trata um complexo agrícola, atualmente devoluto, localizado no lugar do Pastor, município de Penela (a 25 km do centro de Coimbra). Escolhe-se este projeto como exemplo por se centrar na reabilitação, onde o minucioso levantamento de materiais, técnicas e sistemas construtivos teve especial foco. Outra questão, não menos preocupante no panorama português relativo à arquitetura, é o gradual desaparecimento de técnicas e sistemas construtivos tradicionais, a par do decrescente número de pessoas detentoras do conhecimento para a sua execução. Pretende-se assim reiterar “a importância da cultura construtiva como legado a preservar, reutilizar e transmitir às gerações futuras.”²
A Quinta do Pastor conta com um conjunto edificado (1.600 m2 de área de implantação) composto por um edifício habitacional, alfaias, cortes, uma eira e um armazém, que se desenvolvem em volta de um pátio central, contando ainda com 2,2 ha de terreno agrícola associado.
A pedra e a madeira são os elementos fundamentais para estas construções, contanto com pontuais reforços estruturais em betão, feitos a posteriori. Nos edifícios das lavouras, os sistemas construtivos são simples e rudimentares, com as robustas vigas assentes diretamente nas paredes portantes formando telhados de 2 águas.
No edifício destinado à habitação, as marcas de diferentes tempos estão muito presentes. Respondendo à necessidade de mais espaço, o edifício foi alvo de sucessivos acrescentos, sendo quase possível adivinhar a sua história. Hoje, com famílias cada vez menos numerosas, torna-se praticamente impossível preencher edifícios habitacionais destas dimensões (7 quartos, 2 cozinhas, diversas salas, salinhas e salões), porém abrem-se as portas para novos modelos de habitacionais, centradas na ideia de “comunidade” para que, desta forma, se reestabeleça a vida e a dinâmica outrora existentes neste tipo de complexos.
Aqui, os sistemas construtivos são mais elaborados e a madeira ganha um especial foco, estando presente não só na estrutura dos pavimentos e dos telhados, mas também nas portas, portadas, caixilhos, guarnições e, evidentemente, no mobiliário. São ainda dignas de referência as expressivas paredes divisórias em tabique, adornadas por minuciosas escaiolas a simular diferentes mármores, com nuances de cor e veios delicadamente desenhados, que conferem personalidade à casa.Naturalmente, grande parte das patologias devem-se à ação do tempo, sendo visível o envelhecimento dos materiais e o seu desgaste pelo uso. São ainda de referir as anomalias causadas pela entrada de água através da cobertura exigindo, nestes pontos, uma intervenção mais profunda.
“Hoje, numa época de crise, em que se torna premente a sustentabilidade das construções, é cada vez mais importante o seu melhor entendimento, pois trata-se de construções melhoradas de forma empírica ao longo de séculos para que com escassos recursos melhor se adaptassem às condições locais”³
O projeto de reabilitação deste conjunto ronda a ótica da 3ª via de Távora, onde não existe a oposição velho-novo, mas sim uma continuidade intertemporal. Aposta-se no restauro dos materiais e sistemas preexistentes que forem passíveis de recuperar, substituído quando necessário, melhorando-os sempre que possível, para que correspondam às exigências e necessidades de hoje, mas preservando sempre a identidade e autenticidade das construções. Acima de tudo é necessário compreender profundamente os sistemas utilizados para que, no projeto, seja possível tomar decisões informadas, procurando compatibilidade com as técnicas correntes, tirando sempre o maior partido dos materiais construtivos.
Este artigo não pretende ser uma ode ao passado, nem uma recordação saudosista dos tempos idos. Pretende apenas recordar e fazer recordar as valências e a eficácia dos sistemas de construção tradicionais e, deste modo, aprender com o passado para que seja possível desenhar um futuro mais consciente e sustentável.
“Não tem sentido livrarmo-nos do passado para pensar apenas no futuro. A oposição entre o futuro e o passado é absurda. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; somos nós que, para o construir, lhe temos de dar tudo, dar-lhe até a nossa vida. Mas para dar, é necessário possuir, e nós não possuímos outra vida, outro sangue, além dos tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós."⁴
¹ Ferreira, T. C., Castañón, D. O., & Fantini, E. (2023). Fernando Távora - Novo/Antigo - Obras - Conservação, Reabilitação, Renovação, Restauro, Reconstrução, Requalificação, Salvaguarda. Porto: Edições Afrontamento, pág.11.
² Ibid., pág. 220.³ Mascarenhas, J. (2015). Sistemas de Construção: XV - Arquitetura Popular Portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, pág.65.
⁴ Weil, S. (2014). O enraizamento: prelúdio para uma declaração dos deveres para com o ser humano. Lisboa: Relógio d'Água, pág.50.
Reabilitação Corpo de Deus
- exercício sobre arquitetura corrente de valor patrimonialPedro Costa Gama, COLECTIVO arquitetos
O presente artigo reflete um caso de Reabilitação urbana num lote com logradouro, na Rua Corpo de Deus nºs 2 a 10, União de Freguesias de Coimbra. O processo iniciado pelo diagnóstico e estudos de 2016 foi licenciado em 2018 e construído ao longo da pandemia, até 2022.
Com uma frente de rua e disposição em L, dispõe de 3 panos de fachada tardoz. As empenas, a Norte e a Sul, correspondem ao 4º andar e sótão e resultam das paredes meadoras com os prédios contíguos intersetadas com a cobertura. Pela forte inclinação da rua medieval, o embasamento tem uma variação de cerca de 2 m de altura, entre a cota 29 e 31. A área de implantação é de 141,9 m2, sobrando 172,3 m2 de espaços exteriores privativos divididos por 3 cotas diferentes: saguão do 1º andar, pátio do 2º andar e jardim do 3º andar. A área bruta de construção existente é de 741,8 m2, sendo que desse total 69,9 m2 correspondem ao sótão – na época uma área de arrumos esconsos, sem condições para ser habitável e por isso omissa na Certidão Permanente da Conservatória. Em contexto de Centro Histórico, o lote encontrase entre vários Monumentos Nacionais, de forte presença no tecido urbano, assim como outros Imóveis de Interesse Público ou Arquitectónico. O próprio troço da Rua Corpo de Deus ocupa um papel de destaque na história da cidade uma vez que seria o limite Nordeste da Judiaria Velha, bairro dotado de Sinagoga, fonte e cemitério exclusivos.
O Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE) ditou uma operação urbanística enquadrada nas Obras de Alteração. Apesar das alterações propostas, em linha com as regras gerais e específicas do Regulamento Municipal (de Edificação, Recuperação e Reconversão Urbanística da Área afeta à candidatura da Universidade de Coimbra a Património Mundial da UNESCO - Aviso n.º 2129/2012), não se propôs qualquer aumento à área total de construção, implantação, ou altura das fachadas. O Regulamento defende a salvaguarda da zona central da Cidade pela preservação das tipologias tradicionais, sublinhando a necessidade de um equilíbrio entre os programas residencial, comercial e institucional. No perímetro são incluídas construções intramuros assim como arrabaldes, de cariz essencialmente medieval e composto maioritariamente por arquitectura corrente.
O edifício é caracterizado pela imponente fachada de 5 vãos em cada piso até ao 3º andar (janelas de abrir, sacada e guilhotina por esta ordem) e sobre cuja cornija existe como 4º andar um Acrescento em tabique estrutural, com apenas três vãos de sacada. Sobre este andar trabalham duas asnas de madeira que dividem o sótão e suportam a cobertura. Sendo que a espessura das fachadas e meadoras (constituídas por parede dupla de pedra calcária com terra barrenta batida entre as alvenarias) tem cerca de 85 cms de espessura, todo o interior a partir do 1º andar é construído por pavimentos e paramentos de vigamentos de madeira cruzados, sendo que a distância média entre tectos e soalhos é de 55 cm. As vigas principais "conectam" as 2 empenas, sendo que a partir desses elementos horizontais são lançadas as restantes estruturas de pavimento até às fachadas principal e tardoz. A estrutura interior trabalha com e sobre esses pavimentos, em paredes de tabique que funcionam não como suporte directo do piso de cima, mas como uma teia estrutural que se contraventa entre pavimentos e o núcleo da caixa de escada, igualmente em estrutura de frontal.
O prédio terá sofrido uma profunda reforma nos finais do séc. XIX, da qual se encontraram vestígios doutra caixa de escadas no lado Norte, tendo a nova estrutura passado a ocupar um lugar central no tardoz e a eixo da entrada principal. Na Planta de Coimbra de 1873-74, constatamos que a implantação não apresentava a disposição actual em L, apesar da profundidade da empena Sul ser a mesma, assim como não existia divisória à cota do jardim para o vizinho a Norte. Tecemos a hipótese da operação ter demolido construções e desaterrado terreno, para abrir o saguão e pátio tardozes no 1º e 2º andares, podendo ventilar e iluminar todos os pisos. Essa mancha de implantação poderia ser um único edifício, ou dois prédios diferentes – mais à escala do lote gótico que pontua toda a rua. Nesse caso a reforma terá sido uma aglutinação das estruturas numa só, com inevitável reformulação da volumetria total. O 4º andar foi acrescentado na mesma época, numa operação normalizada nestes edifícios de "carapaça" de alvenaria e "recheio" de madeira. Assim se adicionou a leve construção em frontal, ou chamel (paredes finas em estrutura cruzada de madeira, preenchidas a alvenaria avulsa e rebocadas com argamassas de cal e areia grossa). Este é o único andar em que os tectos são de gesso estucado sobre fasquiado, com frisos do mesmo material – ao contrário dos pisos inferiores em que os tectos são todos de madeira aparente, bem como as sancas. O Acrescento fez o sótão subir um andar, sendo que a caixa de escadas existente serve efectivamente cinco andares.
O principal objectivo do projecto foi o de conservar o partido arquitectónico do edifício existente, além dos sistemas e elementos construtivos que o compõem e lhe atribuem autenticidade enquanto documento histórico. As alterações propostas seguiram a emergência do diagnóstico de estabilidade, e da salubridade para todos os espaços (interiores ou exteriores), assim como pressupostos programáticos: a possibilidade das duas lojas serem exploradas por um só serviço, ou a vontade de dispor de dois apartamentos por piso (T2s e T1s no 1º e 2º andar, ao contrário de um único T3 no 3º e 4º andar, e T2 no sótão).
Pelo exercício de enquadrar no plano teórico as operações apresentadas no projecto, catalogamo-las por tipo de intervenção, conforme a terminologia difundida pelo ICOMOS e reproduzida para as intervenções deste tipo e problemática.
- CONSOLIDAÇÃO : restabelecimento ou reforço de materiais e elementos arquitetónicos, estruturais ou não, com utilização de técnicas e materiais do sistema construtivo original/tradicional. Apesar de muitas operações não serem baseadas só em técnicas e materiais tradicionais, seguiram a recomendação geral de adicionar a menor intrusão possível ao edifício.- PRESERVAÇÃO : retardar o processo de degradação e prolongar a sua existência, sem modificar os elementos existentes de tipologia original/tradicional e mantendo os vestígios de envelhecimento. Paredes, lanços de escada, pavimentos, rodapés, guarnições, folhas interiores, caixilhos da fachada principal, sancas e tectos que não apresentavam a necessidade de substituição, nem obstáculos ao novo programa, receberam o tratamento necessário para prolongar o seu 'tempo de vida'.
- RESTAURO : restituição, integral ou parcial, da situação original ou posterior à construção, deteriorada ou alterada em épocas sucessivas, visando a unidade e coerência da edificação, do ponto de vista de sua conceção e legibilidade originais, e a acentuação dos valores estéticos e históricos. Aos elementos arquitectónicos que não eram passíveis de ser mantidos foi dada preferência à substituição por réplicas. O objectivo global foi o de manter a identidade da arquitectura, onde não era já possível manter a autenticidade.
- DESCONSTRUÇÃO : o desmonte criterioso, parcial ou total, de um imóvel pela ordem inversa da construção, preservando os elementos construtivos e estruturais, aproveitando os componentes e os materiais reutilizáveis.
- REABILITAÇÃO : adequação e melhoramento das condições funcionais de um edifício, com a possibilidade de alteração da organização espacial, embora mantendo os princípios estruturantes, os elementos arquitetónicos e a imagem global exterior. Esta definição em particular poderia ser o resumo das principais preocupações e objectivos deste projecto, acrescentando a manutenção da imagem interior.
- TRANSLOCAÇÃO : desmontagem, remoção e remontagem de um edifício ou de partes, noutro local ou posição, com a recolocação idêntica dos seus componentes. Na escada exterior entre o jardim e a cozinha do 4º andar, em eminente ruína, propôs-se a desmontagem e remontagem. Nesse sentido, esta delicada operação foi executada na mesma localização e disposição, mas sobre novas fundações.
- REINTERPRETAÇÃO : reformulação de elementos existentes ou desaparecidos com base numa (re)construção de algumas características originais/tradicionais identificáveis (dimensões, geometrias, materiais, volumetria, proporções, métrica), distinguindo-se características que identifiquem a contemporaneidade da intervenção. A grande parte das operações propostas, foram na verdade reinterpretações de elementos e técnicas construtivas tradicionais, e não propriamente de partes ou elementos entretanto desaparecidos. Essa foi a filosofia criativa com que procuramos soluções para a relação harmoniosa entre as alterações/adições propostas e as formas e linguagem existentes, por meio de diferenças subtis no desenho de pormenorização.
Em defesa das boas práticas projetuais e construtivas, apresentamos a síntese deste processo, esperando que a partilha do conhecimento possa contribuir para um mercado mais transparente, projetos e obras mais qualificadas e uma sociedade de cidades mais justas: casas para todos.
Durante a próxima semana, serão anunciados dois textos selecionados para apresentação pública. Os respetivos autores serão convidados a partilhar as suas ideias no dia 11 de maio, durante a tarde, no FORMA PAVILION.
Todos os textos selecionados irão ser publicados na integra no site dos FORMA. Os seus resumos poderão ser consultados no festival.
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A curadoria e seleção dos textos é da inteira responsabilidade da organização.
A organização reserva-se o direito de, em caso de inexistência de quórum suficiente ou de os trabalhos submetidos não apresentarem a qualidade considerada necessária, não selecionar qualquer texto para publicação, apresentação ou atribuição de prémios.
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